Os papéis da casa

Raduan Nassar é esse escritor brasileiro que poucos conhecem e muitos perguntam se vale Prémio Camões. Entre tanta gente que desconheço, essa sorte de ter na lista dos livros da minha vida “Um Copo de Cólera”. E a sorte de conhecer a minha nova vizinha do lado.

Este mês ando em mudança. Da casa que um dia materializou a verdadeira, para a mais recente que a define para além da mera vontade. Junto aos caixotes e aos livros de circunstância, há os jornais que se acumulam no canto. E depois a inevitável pergunta de porque é que guardei estes papéis que nem pego nem lembro. O impulso é sempre o mesmo: pegar no saco preto, ajustar a abertura até que fique de pé, empurrar o monte bem estruturado para dentro e depois carregar sala fora. Mas não. Terrível tique, este, de querer olhar, verificar páginas e fotografias, reler palavras e sentidos. Entre joelhos no chão e mãos mascarradas, uma fotografia tirada por Alfredo Cunha. E a última aparição de Herberto Hélder, que o jornalista Luís Pedro Nunes relata. Que bonito. Tão bonito.

A revista do Expresso releva momento raro na vida do poeta. Nunca gostou de aparecer aos desconhecidos, não fazia lançamentos de livros, muito menos entrevistas sisudas ou edições repetidas. Quis a distância certa, precisa, rigorosa. Criticaram, infernizaram, disseram da arrogância e da altivez. Que era cena e negócio, panfleto em mau humor. Só se esqueceram de o compreender. Ou de o ler.

“Não sentir ninguém nem falar nem me ver obrigado à condescendência ou à fraternidade.”
(in Os Passos em Volta, Assírio e Alvim)

Peguei nesse retrato e guardei. Em lugar destinado aos tesouros que são de papel ou mais do que ouros de amarelos exibicionistas. E essa solidão que ali se vê, é a mesma que anseio. Chegar.

Esta semana, aparece-nos o Prémio Camões. Sempre com essa aura da perfeição, a literatura que se escreve em língua portuguesa. Raduan Nassar, tão brilhantemente desconhecido por escolha e oportunidade, anda pelo campo dos “Brasis” distantes, a cuidar dos verdes que apanham seus olhos e dos ventos que atravessam seus dedos. Dizem os jornais brasileiros que, quando fez 80 anos, desligou o telefone. E continua a não ligá-lo muitas vezes. Trabalha na agricultura, na quinta onde se refugiou. Publicou três livros. E não mostrou mais nada. Porque isso não significa que não tenha escrito. Acredito mesmo que quem escreveu assim, continue a fazê-lo.

À conversa com um dos mais brilhantes escritores portugueses, de quem não digo o nome por respeito à confidência, perguntei porque não escrevia mais. Respondeu-me: “escrevo sim, muito. Só não edito. É uma canseira.”

E por lógicas imaginativas e de impulsos constantes que dá nestes humanos fora daqui, tenho em mim que Nassar escreve entre as mondas e as chuvas, os passos e as nuvens e os bichos. E por sonhos pensados, que Herberto tenha arca escondida de encontro medido. E por aspirações instintivas que o escritor que cito tenha mais maravilhosos registos deste país.

Dos papeis da casa antiga trago o rosto do Herberto, “Um Copo de Cólera” de Nassar e os livros do escritor genial, sem nome dizer. Do resto, muito vai embora.
Mais certezas de que um dia, escrever será também tempo e escolha, afastamentos e medidas.


Raduan Nassar Prémio Camões 2016

Lavoura Arcaica (1975)
Um Copo de Cólera (1978)
Menina a Caminho (1994)
(Obras a serem reeditadas em Portugal pela Companhia das Letras)

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