Preparar os ouvidos para os búzios

A ingenuidade tem essa definição cada vez mais ingrata. De repente e de culpa formada como se em justiça não se pensasse todas as vezes que alguém diz: “É tão ingénua, coitadinha!”. E depois, pegamos nos poemas de Sophia.

É uma das novidades literárias da temporada. A Assírio e Alvim reedita obras de Sophia de Mello Breyner. Parece ser mais do mesmo, repetições fáceis. Mas quantas vezes já fomos a uma livraria para comprar aquele livro, que nos disse mais e melhor e: “a edição está esgotada”.

A edição editorial é uma tarefa de memória. Quando um livro surge nas prateleiras de venda, há sempre uma vontade de mão e de imaginação em agarrar. Depois, essa dinâmica da conquista, dos movimentos e das palavras. Suaves desejos que nos invadem de fazer vida com aquele ou outro livro, que nos rebenta. A tarefa de editar é quase ditatorial: alguém escolhe tudo aquilo a que acedemos. E isto é um elogio. Porque há sempre esse livro que nos enche os dias e as preces e mesmo sendo ilusoriamente uma escolha nossa, é mais do que isso. É a generosidade de alguém que escolheu esse exato, para cada um de nós. E nós, ingenuamente, acreditamos que fomos nós que o descobrimos. E não é lindo?

Faz sentido que cada encontro com um livro seja fruto de um alinhamento ou escrito prévio ao acontecimento para que a fé no génio humano continue a ser ingénuo? Lendo Sophia, mantenho essa crença na ingenuidade como um processo de conhecimento, mais do que de ignorância. Quando o mundo descrimina os ingénuos, a poesia é capaz de os salvar. Sophia explica:

“Este búzio (…)
Porém nele não oiço
Nem o marulho de Cós nem o de Egina
Mas sim o cântico da longa vasta praia
Atlântica e sagrada
Onde para sempre a minha alma foi criada.”

Sophia de Mello Breyner
De O Búzio de Cós e Outros Poemas
Ed. Assírio e Alvim


PS: André Jorge, editor e fundador da Cotovia, morreu neste agosto quente e melancólico. Viva André Jorge, viva os livros que André Jorge me fez ler.

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