Uma surpresa do escafandro

A rotina de conhecer pessoas novas, todos os dias transforma-se, a pouco a pouco, numa nébula de sons e imagens que apenas se organizam em silêncios propositados. Distancio-me tranquilamente e arrumo cada um, em sítio que exijo ser sempre o melhor.

Há dias, tínhamos marcado a entrevista com um “senhor deste mundo das artes”. Chegamos a horas de estacionar, de preparar o tripé e a câmara, bateria nova e entrar na antecâmara da grande sala com o tempo de sobra. Por vontade de fazer brilhar esse cenário que se antevia num dos programas “As Horas Extraordinárias” da RTP, entramos na intimidade dos artistas, nos espaços em que se preparam para os palcos, numa invasão permitida e sempre tão gratificante. Entre corredores e sorrisos cruzados, ficamos à espera do “senhor deste mundo das artes”. E chegou. Dizendo do nosso atraso, da falta de respeito, de como tinha muito de fazer, de que não tinha mais tempo e que a espera a que o sujeitamos não era nada profissional. Tentamos justificar, que tinha havido um desencontro infeliz, que nós estávamos pronto e a horas, que tínhamos estado à espera também, que “imensa desculpa” mas sim, não houve intenção nem sequer erro. Estávamos no local ao qual fomos conduzidos.

Nada a fazer. O “senhor deste mundo das artes” respondeu de forma séria que não estava disponível para conversar connosco e que talvez “daqui a uma hora e meia” nos pudesse dispensar tempo. Muito agradecemos a disponibilidade. Viemos embora. Pela primeira vez na minha vida profissional.

E depois acontece o Dia Mundial da Dança. A Companhia Nacional de Bailado faz estrear “Romeu e Julieta”, com encenação de Rui Horta, para dar a ver o clássico de Shakespeare em corpos pretos de raivas e ódios que só o amor pode trazer.

Rui Horta é um dos mais proeminentes senhores da dança. E Senhor em todo o lado. Faz do corpo o melhor contador de histórias e transporta cada palavra nesse movimento perpétuo a busca pela verdade. A verdade das pessoas. É uma sorte poder estar perto de pessoas assim, que nos comunicam o seu génio e depois ainda nos recebem apenas como seres humanos, com honestas simpatias e com essa simplicidade que só os grandes sabem ter. Ah pois: sabem.

Dessa sabedoria, melhor me disse um pastor de cabras do Piodão, quando andávamos atrás de histórias do país. Num fim de tarde muito quente, já depois de vários dias na estrada, chegamos às pedras escarpadas de um lugarejo sem estrada mas com pessoas. A reportagem tinha o objetivo de seguir o rapaz nesse dia. Ordenhou e arrumou as cabras, fez festas nos cães, lá ia falando e contando do diário movimento tão bem ensaiado, tão meticulosamente coreografado, porque o leite não é para desperdiçar e o queijo dá dinheiro depois. Tudo tão bem executado, que as cabras já reconheciam os gestos a seguir. E o rapaz lá foi respondendo: “que nunca tinha saído do concelho”, “que a mãe tinha morrido há muito tempo”, que vivia com o irmão”, “que gostava muito do que fazia”. E a reportagem estava feita. Desligamos a câmara. Aliviamos a conversa. Um dos seus colegas disse que “ainda bem que a reportagem foi feita neste dia, que o meu amigo faz 18 anos e que é como se fosse uma prenda”. Voltamos a ligar a câmara, apontamos o microfone e perguntamos: “Qual é o sonho da tua vida?”. O silêncio, só o silêncio.

Ainda agora me comove. Este silêncio que reconheço também como sabedoria de uma pessoa que se escusava a ter sonhos. Vai seguindo a rotina dos dias. Porque saber mais, muitas vezes traz uma infelicidade danada.

Gosto de saber que senhores como Rui Horta andam por cá para nos dar sonhos. Carregados de silêncios que nos fazem pensar e arrumar a vida. De nos surpreender com a sua imaginação e depois podermos nós, cada um de nós, poder ter sonhos e estrelas e sons e poesias bonitas.

“O Escafandro e a Borboleta” (2007) de Julian Schnabel mostra-nos tão bem como o silêncio é a melhor forma de descobrir. A surpresa do escafandro é trabalho diário. Com a sabedoria que cada um nos dá a conhecer. Como Rui Horta. Ou o rapaz do Piodão.

“Romeu e Julieta” no Teatro Camões em Lisboa, até dia 15 de maio.

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