"Gravíssimo" e "lamentável". Câmara de Lisboa debaixo de fogo após envio de dados à Rússia

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Mário Cruz - Lusa

O caso do fornecimento de dados de ativistas às autoridades russas, por parte da Câmara Municipal de Lisboa, está a levantar uma onda de críticas. Os vários líderes políticos portugueses descrevem o sucedido como “inaceitável”, “assustador”, “gravíssimo” e “terrorismo político”. O Presidente da República insiste que o episódio é “lamentável” e que “não devia ter acontecido”. Carlos Moedas vai mais longe e defende que a única saída de Fernando Medina é a demissão. A embaixada russa em Portugal já se pronunciou sobre a polémica, afirmando que os ativistas “não interessam nem à Embaixada em Lisboa, nem a Moscovo” e que podem “voltar tranquilamente a casa”.

O caso foi avançado pelo jornal Expresso, que noticiou na quarta-feira que os dados de três ativistas russos residentes em Portugal foram partilhados pela Câmara Municipal de Lisboa com a Embaixada da Rússia e seguiram para o Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país. Os três ativistas fizeram parte da organização de um protesto em Lisboa, a 23 de janeiro, pela libertação do opositor russo Alexei Navalny, detido na Rússia. A informação da partilha de dados pessoais, como nome, morada e contactos, foi depois reafirmada à RTP por uma das ativistas em causa.

A Amnistia Internacional defendeu que a divulgação dos dados destes três ativistas “constitui uma clara violação dos seus direitos humanos, em particular, do direito à liberdade de manifestação, expressão e reunião, e ao direito à proteção dos seus dados pessoais”.

O Presidente da República considerou ser “lamentável” o facto de serem colocados em causa os direitos fundamentais das pessoas num país democrático e livre.


“É evidente que quando se trata de cidadãos portugueses ou estrangeiros, e depois isso acaba por ser utilizado contra os manifestantes, justifica aquele meu comentário de que é lamentável”, afirmou o Presidente da República, que está esta quinta-feira na Madeira, no Funchal, no âmbito das comemorações do 10 de Junho.

"Mais do que propriamente o problema da imagem do país, é o problema do respeito por um princípio fundamental, que é o princípio da proteção dos direitos fundamentais", acrescentou Marcelo Rebelo de Sousa. "A Administração pública tem os seus procedimentos, mas não podem questionar direitos fundamentais", acentuou.

“É lamentável que isto tenha acontecido e percebo o pedido de desculpas do presidente da Câmara de Lisboa. O que ele disse, no fundo, é aquilo que todos os responsáveis sentem: não devia ter acontecido e espera-se que não volte a acontecer”, declarou o chefe de Estado.
Medina pede desculpas públicas por “erro lamentável”
O presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, já emitiu um pedido público de desculpas, assumindo que foi "um erro lamentável que não podia ter acontecido".

"Quero fazer um pedido de desculpas público aos promotores da manifestação em defesa dos direitos de Navalny, da mesma forma que já o fiz à promotora da manifestação. Quero assumir esse pedido de desculpas público por um erro a todos os títulos lamentável da Câmara de Lisboa", disse Fernando Medina em conferência de imprensa.

Medina justificou o sucedido com um “erro de funcionamento burocrático” que não irá repetir-se e anunciou a adoção de novos procedimentos internos no caso das autorizações das manifestações. “A Câmara já tirou consequências desta situação, alterando os procedimentos a partir do mês de abril, deixando de facultar os nomes dos promotores das iniciativas a manifestações realizadas junto a embaixadas”, anunciou Medina.
Moedas insiste na demissão de Medina
Medina assume, assim, que esta era uma prática recorrente e avança que pediu o apuramento das circunstâncias em que tal ocorreu, mas não revela se foram enviados dados de outros manifestantes a outros países.

Carlos Moedas, candidato do PSD à Câmara de Lisboa, descreve o caso como “inaceitável” e “gravíssimos para a democracia”, defendendo que, “a confirmar-se, Fernando Medina só terá uma saída: a demissão".


“Isto é assustador e mostra que estamos num sistema em que estamos seguramente, num momento da nossa história, em que a democracia está a ficar doente”, referiu Moedas. Moedas defendeu que “erros técnicos” como este “têm responsabilidades políticas” e voltou a pedir a demissão do presidente da Câmara de Lisboa.

O candidato à Câmara de Lisboa sublinha que existem ainda “muitas questões em aberto”: “Falta saber quantas outras manifestações em relação a outros países, em que têm regimes que sabemos que destroem os seus oponentes e que têm uma atitude de desrespeito pelos direitos humanos, já fizeram isto”.

A coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, considerou que "o que aconteceu não podia ter acontecido” e exige também explicações alargadas. "Este procedimento era comum. Quer dizer o quê, que aconteceu também noutras circunstâncias?", questionou a dirigente partidária.
Sobre o pedido de demissão de Medina feito por Moedas, Catarina Martins considera ser “mais um número de campanha eleitoral do que uma afirmação com consequência”.

O líder do CDS afirmou mesmo que a partilha de dados dos ativistas anti-Putin com Moscovo “representa um ato de terrorismo político e subserviência”, acusando a Câmara Municipal de Lisboa de “entregar a cabeça de três pessoas a um Governo que viola os direitos humanos e opositores”.

Francisco Rodrigues dos Santos considera que “um pedido de desculpas não protege a vida dos denunciados nem apaga um crime” e exige, por isso, a “saída de cena” de Fernando Medina. “Ou Medina se afasta, ou todo o povo que ama a liberdade tem de o remover com a força do voto nas próximas eleições autárquicas”, declarou.

O presidente do PSD avançou esta quinta-feira que irá apresentar um requerimento na sexta-feira para que Fernando Medina e Augusto Santos Silva prestem declarações na Assembleia da República.

Rui Rio defende que “na prática, a Câmara Municipal de Lisboa entregou e denunciou os ativistas a um Governo que não respeita a liberdade e democracia” e questionou qual a lei que obrigou Fernando Medina a entregar estes cidadãos russos.

“Isto não é grave, é gravíssimo”
, afirmou Rui Rio. “Num país democrático, isto é absolutamente intolerável e nenhum Governo da União Europeia faria semelhante coisa”, asseverou. Rui Rio reiterou que o que está em causa “é muito grave” e pode levar à demissão de Medina, mas apenas “depois de tudo esclarecido”.

Por sua vez, o partido Pessoas-Animais-Natureza vem repudiar "o infeliz acontecimento protagonizado pela Câmara Municipal de Lisboa ao entregar os nomes e as moradas de três manifestantes à embaixada russa em Lisboa e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia". O PAN "exige que sejam apuradas e assumidas responsabilidades políticas e defende que Fernando Medina deve prestar esclarecimentos à Assembleia Municipal de Lisboa".

A Iniciativa Liberal reclama igualmente que o presidente da Câmara de Lisboa assuma responsabilidades políticas.

Também André Ventura diz que o Ministério Público deve investigar este caso. O líder do Chega quer saber quais as consequências políticas para Fernando Medina.
“A senhora ativista pode voltar tranquilamente para casa”
A embaixada da Rússia em Portugal já reagiu a esta polémica, afirmando que os ativistas “podem voltar tranquilamente para casa”.
“Não interessam nem à Embaixada em Lisboa, nem a Moscovo os tais indivíduos com imaginação malsã”, lê-se numa nota à imprensa publicada na página oficial da representação diplomática. “Temos outras prioridades que constituem o trabalho construtivo em prol do desenvolvimento da cooperação russo-portuguesa”, acrescenta.

A embaixada diz conhecer “bem a abordagem muito rigorosa das autoridades portuguesas ao processamento dos dados pessoais” e argumenta que a “excitação em causa está, sem dúvida, alimentada pelo desejo dos tais ativistas de atrair atenção mediática a si próprios através da politização generalizada e provocações deploráveis”.
Dados "são inúteis para a parte russa"
Em resposta à RTP, a embaixada russa garante que a "missão diplomática nunca solicitou quaisquer dados deste género, são inúteis para a parte russa, quer para a Embaixada, quer para Moscovo".

"Igualmente não os processámos nem enviámos a alguém", acrescenta.

"Quanto ao apagamento dos dados, solicitado pela CML em conformidade com o Regulamento Geral de Proteção de Dados, gostaríamos de sublinhar que o respeito pela legislação nacional e o cumprimento das suas exigências é a obrigação incondicional de qualquer representação diplomática, de acordo com o direito internacional, e é sempre o caso da nossa Embaixada", prossegue a representação diplomática.

"Em relação aos três organizadores da manifestação, dos quais se fala muito nesta quinta-feira nos meios de comunicação social portugueses, é o seguinte. A sua narrativa sobre medo de regressar à Rússia não passa de uma fantasia esquisita, evidentemente alimentada pelo desejo de atrair atenção pública a si próprios, absolutamente desinteressantes para as autoridades russas. Não merecem tanta discussão mediática, aliás. Se quiserem podem livremente ir à Rússia a qualquer momento, em conformidade com as exigências sanitárias e epidemiológicas vigentes", conclui.
Ativistas recorrem à justiça
À RTP, Ksenia Ashrafullina, uma das ativistas visadas, disse ter medo de regressar à Rússia e anunciou que decidiu avançar com o caso para tribunal, juntamente com Pavel Eliazarov, outro dos manifestantes cujos dados pessoais foram enviados para entidades russas.

Eliazarov, em declarações à RTP, reclamou mais consequências para a Câmara Municipal de Lisboa. "Espero que Portugal consiga resolver isto sozinho" afirmou.

Os ativistas anunciaram que vão apresentar uma queixa na justiça contra a Câmara Municipal de Lisboa para que tal "não volte a acontecer" com cidadãos portugueses.

"Estamos a falar com vários advogados para ver como proceder com a queixa para que isso não volte a acontecer com os cidadãos portugueses", disse à agência Lusa Ksenia Ashrafullina.

A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) também confirmou que abriu um processo de averiguações à partilha de dados pessoais dos três ativistas anti-Putin em causa com a Rússia por parte da Câmara de Lisboa.
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