Hospitais públicos estão endividados e "à beira de um ataque de nervos"

por RTP
Pedro A. Pina - RTP

Os hospitais públicos estão endividados e "à beira de um ataque de nervos". O cenário é traçado no relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde. O estudo revela "muitas pedras no caminho" do setor, uma falta de investimento durante a crise que não foi compensada, “uma clara crise no setor”, além de não haver informação agregada sobre o número de profissionais a trabalhar no setor da Saúde.

O Relatório de Primavera 2018 do OPSS, que é esta terça-feira divulgado, resume o setor hospitalar como "endividado e à beira de um ataque de nervos" e constata que os hospitais do Serviço Nacional de Saúde continuam marcados pela intervenção da `troika`, apesar de o país já não se encontrar sob intervenção externa.

"No país, a crise económica acabou, mas no setor hospitalar continua", resume o relatório.

O quotidiano dos hospitais é marcado pela ameaça de necessidade de injeção de dinheiro e há nas unidades do SNS falta de liquidez e um aumento do `stock` da dívida a fornecedores, o que tem "conduzido à prática de entregas de verbas a título extraordinário aos hospitais".

De acordo com Rogério Gaspar, coordenador do estudo, o sistema de saúde enfrenta duas grandes dificuldades: a falta de previsibilidade a longo prazo já que não há ciclos de financiamento plurianuais e uma falta de agregação da informação sobre os recursos afetos à saúde, tanto no público, como no privado ou no setor social.

Rogério Gaspar, coordenador do estudo, revela em entrevista à RTP que a falta de investimento na saúde durante o período da troika não foi compensado posteriormente, apesar de ter havido alguma reposição salarial e de recursos humanos.

A falta de dados agregados sobre os recursos humanos torna as decisões sobre a saúde difíceis a qualquer governo, alerta o coordenador do estudo que junta cinco instituições universitárias para a análise do estado da Saúde em Portugal.
Reforma hospitalar afetada
O relatório de 188 páginas traça o quadro de uma “clara crise no setor”, com a reforma do sistema a não avançar. "O tempo da reforma hospitalar foi afetado não só pelo quadro de restrições financeiras, mas também pela incerteza gerada pela solução governativa inovadora. O tempo de lançamento de reformas estruturantes, tipicamente no início das legislaturas, foi condicionado pela capacidade de obtenção de ganhos rápidos que justificassem a solidez dessa mesma solução".

Ao mesmo tempo, o estudo aponta para a necessidade de os administradores hospitalares terem de ser avaliados, alertando que a escolha de administrações de hospitais mantém-se presa à confiança política. "Apesar da mudança na forma de seleção/nomeação dos membros dos conselhos de administração, o processo é praticamente o mesmo, mantendo-se o forte pendor de confiança política", conclui o Relatório.

A despesa com recursos humanos na saúde em Portugal é considerada abaixo da média dos países desenvolvidos. O relatório aponta assimetrias no crescimento do número de profissionais e de horas contratualizadas no Serviço Nacional de Saúde.

"Não se gasta muito com recursos humanos na Saúde em Portugal, estamos abaixo de outros países desenvolvidos. Estamos na ordem dos 32%-34% enquanto os outros países estão na ordem dos 38%", disse à agência Lusa o coordenador do capítulo "Recursos Humanos na Saúde" do Relatório de Primavera 2018, Tiago Correia, preparado pelo Observatório Português dos Sistemas de Saúde e que é hoje apresentado.

No período mais intenso da crise, entre 2010 e 2015, houve "uma quebra significativa" da despesa com recursos humanos em saúde na ordem dos 9%.

Desde essa altura, tem havido uma recuperação do número de efetivos e da despesa com estes profissionais, mas "os anos da crise foram anos bastante complicados para este processo de crescimento e de recuperação sobretudo do SNS", adiantou o investigador do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa.

Contudo, o crescimento do número de profissionais no SNS foi assimétrico: médicos (internos e especialistas), enfermeiros e técnicos superiores de saúde cresceram a um nível superior à média do crescimento do conjunto dos profissionais (respetivamente 7,1%, 7,2% e 6,9%)", afirma o relatório.

O crescimento das horas contratualizadas no SNS também apresenta assimetrias. O trabalho médico "aumentou significativamente (15,5%)", enquanto o trabalho de enfermagem (0,1%) e dos técnicos superiores de saúde (0,8%) "praticamente estagnou".

"Isto significa que o aumento nominal de enfermeiros (cerca de 3.000) e de técnicos superiores não teve reflexo no aumento real do trabalho", afirma o relatório, que aponta como razão "mais plausível" para esta situação a redução de 40 horas para 35 horas semanais na Função Pública.

Os números sugerem que existe falta de equidade na distribuição de recursos humanos ao longo do país.
Cobertura insuficiente dos cuidados de saúde primários
Globalmente, a análise feita ao setor público da saúde nos últimos dois anos aponta para um setor hospitalar endividado, cobertura insuficiente pelos cuidados de saúde primários, medidas simples e efetivas de saúde pública ainda por tomar e cuidados continuados com pequenos desenvolvimentos.

Segundo o Relatório de Primavera 2018, a limitação imposta por decreto à constituição de USF "prolonga desigualdades entre os portugueses no acesso a cuidados de saúde primários com qualidade".

"O ano de 2017 foi o pior de todos os anos na evolução das USF", refere mesmo o documento, estimando que em maio deste ano existiam 505 USF para uma necessidade estimada de 820 a 850.

O Observatório conclui que as USF "aumentam lentamente" e que, mesmo que atingissem o prometido crescimento de 25 novas unidades por ano, só em 2030 seria "atingida a equidade no acesso".

Criadas em 2005, as USF foram fundadas como uma forma alternativa ao habitual centro de saúde, prestando também cuidados primários de saúde, mas com autonomia de funcionamento e sujeitas a regras de financiamento próprias, baseados também em incentivos financeiros a profissionais e à própria organização.

O relatório lembra que os cuidados de saúde primários são essenciais na melhoria da saúde da população e na luta contra as desigualdades em saúde, indicando que a reforma prometida "está longe de estar concluída".

"Persistem grandes iniquidades no acesso a cuidados de saúde primários de qualidade entre pessoas, famílias e comunidades, consoante a região do país e, em cada região, dentro da mesma comunidade local", aponta o documento.

Ainda quanto aos cuidados de saúde primários, o Observatório considera que os anos de 2017 e 2018 ficaram marcados "por uma prática dissonante do discurso oficial" de se encarar esta área como uma prioridade política do Governo.

Para o Observatório persiste ainda um problema de falta de autonomia de gestão nos centros de saúde, já que os agrupamentos têm dimensão e fluxos de dinheiro semelhantes a médias e grandes empresas, mas "estão sem capacidade de gestão".

"São telecomandados por instâncias burocráticas, distantes, também elas sem grande autonomia", refere ainda.
Aumento de acesso a medicamentos
Na área do medicamento, o Observatório concluiu que há assimetrias geográficas na despesa com fármacos. A despesa nacional 'per capita' foi de cerca de 200 euros, baseada em preços de venda ao público, e a despesa diretamente paga pelas famílias rondou uma média de 71 euros.

O Alentejo e o Centro surgem como as regiões que mais gastam em medicamentos, sendo que a diferença "não é inteiramente explicada pela composição demográfica das regiões".

"A fase pós-'troika' foi acompanhada por uma muito expressiva alteração do acesso a medicamentos no contexto hospitalar e em ambulatório, que representou um acréscimo na despesa com medicamentos no SNS", refere o Relatório de Primavera 2018 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS).

Este aumento de encargos pode ser explicado, em parte, pelas novas moléculas comparticipadas em ambulatório, um total de cerca de 40 novas entre 2015 e 2017. Também a taxa média de comparticipação estatal cresceu, atingindo em 2017 o valor mais elevado dos últimos cinco anos (63,9%).

Um maior acesso a medicamentos exigiria, segundo o Observatório, "um acompanhamento por medidas assentes num quadro que sustentasse e promovesse a utilização e o uso responsável de medicamentos".

Mas isso não aconteceu, bem pelo contrário, considera o relatório, indicando que se foi assistindo a um esvaziamento das instituições que eram os alicerces de "uma política sustentável e responsável na utilização dos medicamentos no SNS".

É analisado o caso específico da diabetes, sendo apontada a necessidade de "monitorizar e compreender a utilização, muito superior à média de diversos países europeus, de medicamentos mais onerosos".


c/Lusa



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