O chumbo do Tribunal Constitucional a algumas normas do diploma das chamadas barrigas de Aluguer pode vir a ter impacto significativo na Procriação Medicamente Assistida (PMA). Em causa está o fim do anonimato nos processos, que pode causar uma quebra nas doações. Com o fim da confidencialidade dos dadores, Portugal junta-se ao Reino Unido e à Holanda.
Vários especialistas alertam que as novas normas vão criar mais dificuldades aos casais que não conseguem ter filhos.
João Silva Carvalho, ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução, avisa que o fim do anonimato vai afastar os dadores e causar problemas nos centros de PMA.
“Vai afetar o funcionamento dos centros. Isso é indiscutível. Vai afetar sobretudo na doação de ovócitos e vai afetar na doação de embriões”, afirmou o responsável à Antena 1.
O ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução alerta “para a falta de quem queira receber os embriões que existem, aos milhares que existem congelados nos centros”.
“Temos muita falta em relação à doação de espermatozoides, que inspira da parte do dador um temor de que no futuro possa a vir ser revelado o seu nome. Portanto isso afeta, com toda a certeza, a doação para dadores portugueses”, acrescentou.
Portugal não vai voltar atrás
Rafael Vale e Reis, professor de Direito da Universidade de Coimbra, admite que o número de doações de esperma, ovócitos ou embriões e pode descer, mas considera que Portugal não vai voltar atrás e que o fim do anonimato só devia ser para doações futuras.
“Estamos na linha da frente, junto de países que também foram arrojados no momento em que decidiram não considerar a regra do anonimato. Estamos no clube do Reino Unido e da Holanda. Países que no caso do Reino Unido e da Suécia mudaram a lei. Começaram por ter soluções de anonimato, que acabaram por ser insustentáveis também. O Reino Unido mudou em 2004 com início de vigência em 2005”, afirmou o juiz desembargador à Antena 1.
Rafael Vale e Reis considera que “deveria ter havido aqui alguma limitação de efeitos da decisão do Tribunal, para evitar que fossem abrangidas as dádivas passadas. O Reino Unido, o que fez foi dizer que, no fundo, esta alteração não tinha efeitos retroativos”.
“Só o legislador agora, percebendo e lendo a decisão do Tribunal Constitucional pode criar um regime transitório. Eu penso que isso não é impossível. De certa forma dizer que talvez só para o futuro. Só nas dádivas feitas a partir de agora é que a regra do anonimato não vigora”, defendeu.
Em declarações ao Público, Rafael Vale e Reis afirma que posição do Tribunal Constitucional “é revolucionária”. “Não estávamos à espera”.
“Tudo se passa como se não existisse a norma de anonimato dos dadores, como se fosse inválida a partir do momento em que foi aprovada desde 2006. O Tribunal Constitucional podia ter limitado os efeitos dizendo que o fim do anonimato vigorava só a partir de agora. Não o tendo feito, é como se o anonimato nunca tivesse existido”, realçou.
Para o jurista, “a solução do Tribunal Constitucional não é para transformar estas pessoas (dadores ou gestantes de substituição) em mães e pais do ponto de vista jurídico”.
Rafael Vale e Reis esclarece que “é apenas para os filhos terem hipótese de as conhecerem” e prevê que uma nova regulamentação da lei venha “estabelecer a idade a partir da qual uma pessoa está habilitada a solicitar informação sobre quem é o dador do material genético a partir do qual foi gerado”.
CNPMA ainda não analisou o acórdão
O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida vai analisar o acórdão na sexta-feira. Eurico Reis, ex-presidente do CNPMA, questiona o que será feito com as dádivas que estão criptopreservadas no banco público e nos centros PMA sob anonimato. “Serão para destruir?”.
Em declarações ao Jornal de Notícias, Eurico Reis classifica o “acórdão como um retrocesso enorme”.
“E agora? Vamos gastar rios de dinheiro a comprar gâmetas no estrangeiro?”, questiona Eurico Reis, que recorda que “praticamente só há recolha de gâmetas nos países que mantém o anonimato de dadores”.
Para Eurico Reis, a decisão do Tribunal Constitucional “veio introduzir uma perturbação indesejada no funcionamento das PMA, que estava a correr bem”.
Em declarações ao Público, Eurico Reis prevê “uma descida a pique das doações” como tem acontecido no Reino Unido, onde o anonimato dos dadores desapareceu em 2004.
“Os dadores não querem ser pais nem mães. Os dadores querem ajudar outros a serem pais e mães”. Não podemos obrigar as pessoas que fizeram a doação no pressuposto de ser em sigilo a quebrar esse sigilo”, sublinhou.