Procriação assistida: fim da confidencialidade pode afastar dadores

por Cristina Sambado - RTP
Regis Duvignau - Reuters

O chumbo do Tribunal Constitucional a algumas normas do diploma das chamadas barrigas de Aluguer pode vir a ter impacto significativo na Procriação Medicamente Assistida (PMA). Em causa está o fim do anonimato nos processos, que pode causar uma quebra nas doações. Com o fim da confidencialidade dos dadores, Portugal junta-se ao Reino Unido e à Holanda.

O Tribunal Constitucional chumbou, na passada segunda-feira, a regra do anonimato de dadores da Lei de Procriação Medicamente Assistida, por considerar que impõe "uma restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas" através destas técnicas.

Vários especialistas alertam que as novas normas vão criar mais dificuldades aos casais que não conseguem ter filhos.

João Silva Carvalho, ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução, avisa que o fim do anonimato vai afastar os dadores e causar problemas nos centros de PMA.

“Vai afetar o funcionamento dos centros. Isso é indiscutível. Vai afetar sobretudo na doação de ovócitos e vai afetar na doação de embriões”, afirmou o responsável à Antena 1.


O ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Reprodução alerta “para a falta de quem queira receber os embriões que existem, aos milhares que existem congelados nos centros”.

“Temos muita falta em relação à doação de espermatozoides, que inspira da parte do dador um temor de que no futuro possa a vir ser revelado o seu nome. Portanto isso afeta, com toda a certeza, a doação para dadores portugueses”, acrescentou.
Portugal não vai voltar atrás
Rafael Vale e Reis, professor de Direito da Universidade de Coimbra, admite que o número de doações de esperma, ovócitos ou embriões e pode descer, mas considera que Portugal não vai voltar atrás e que o fim do anonimato só devia ser para doações futuras.

“Estamos na linha da frente, junto de países que também foram arrojados no momento em que decidiram não considerar a regra do anonimato. Estamos no clube do Reino Unido e da Holanda. Países que no caso do Reino Unido e da Suécia mudaram a lei. Começaram por ter soluções de anonimato, que acabaram por ser insustentáveis também. O Reino Unido mudou em 2004 com início de vigência em 2005”, afirmou o juiz desembargador à Antena 1.

Rafael Vale e Reis considera que “deveria ter havido aqui alguma limitação de efeitos da decisão do Tribunal, para evitar que fossem abrangidas as dádivas passadas. O Reino Unido, o que fez foi dizer que, no fundo, esta alteração não tinha efeitos retroativos”.

“Só o legislador agora, percebendo e lendo a decisão do Tribunal Constitucional pode criar um regime transitório. Eu penso que isso não é impossível. De certa forma dizer que talvez só para o futuro. Só nas dádivas feitas a partir de agora é que a regra do anonimato não vigora”, defendeu.

Em declarações ao Público, Rafael Vale e Reis afirma que posição do Tribunal Constitucional “é revolucionária”. “Não estávamos à espera”.

“Tudo se passa como se não existisse a norma de anonimato dos dadores, como se fosse inválida a partir do momento em que foi aprovada desde 2006. O Tribunal Constitucional podia ter limitado os efeitos dizendo que o fim do anonimato vigorava só a partir de agora. Não o tendo feito, é como se o anonimato nunca tivesse existido”, realçou.

Para o jurista, “a solução do Tribunal Constitucional não é para transformar estas pessoas (dadores ou gestantes de substituição) em mães e pais do ponto de vista jurídico”.

Rafael Vale e Reis esclarece que “é apenas para os filhos terem hipótese de as conhecerem” e prevê que uma nova regulamentação da lei venha “estabelecer a idade a partir da qual uma pessoa está habilitada a solicitar informação sobre quem é o dador do material genético a partir do qual foi gerado”.
CNPMA ainda não analisou o acórdão
O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida vai analisar o acórdão na sexta-feira. Eurico Reis, ex-presidente do CNPMA, questiona o que será feito com as dádivas que estão criptopreservadas no banco público e nos centros PMA sob anonimato. “Serão para destruir?”.

Em declarações ao Jornal de Notícias, Eurico Reis classifica o “acórdão como um retrocesso enorme”.

“E agora? Vamos gastar rios de dinheiro a comprar gâmetas no estrangeiro?”, questiona Eurico Reis, que recorda que “praticamente só há recolha de gâmetas nos países que mantém o anonimato de dadores”.

Para Eurico Reis, a decisão do Tribunal Constitucional “veio introduzir uma perturbação indesejada no funcionamento das PMA, que estava a correr bem”.

Em declarações ao Público, Eurico Reis prevê “uma descida a pique das doações” como tem acontecido no Reino Unido, onde o anonimato dos dadores desapareceu em 2004.

“Os dadores não querem ser pais nem mães. Os dadores querem ajudar outros a serem pais e mães”. Não podemos obrigar as pessoas que fizeram a doação no pressuposto de ser em sigilo a quebrar esse sigilo”, sublinhou.
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