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Ridículo, mas não inocente - Opinião de António José Teixeira

por António José Teixeira - RTP
António José Teixeira - Diretor-Adjunto RTP DR

Há uma questão de princípio que me ocorre sempre que penso no assalto aos paióis de Tancos. Que sentido terá a existência de uma instituição militar que nem sequer é capaz de guardar as suas instalações? Com muito ou pouco orçamento, o mínimo que se exige é que as Forças Armadas saibam tomar conta de si. Muitos militares sentiram vergonha pelo sucedido, tal a caricatura do acontecimento. E também por isso tarda em saber-se quem foram os responsáveis.

O país político agitou-se no sábado por causa da divulgação de um «documento secreto», atribuído a «serviços de informações militares». O tema era o desaparecimento de armas e munições de Tancos. Os destinatários do documento terão sido a Unidade Nacional de Contraterrorismo, da Polícia Judiciária, e os Serviços de Informações e Segurança. São vários os desconhecimentos e os desmentidos, incluindo os da chefia das Forças Armadas e dos serviços de informações. Vamos admitir que este documento não é confirmável, até por ser secreto, mas que ele existe, como diz o Expresso, que o publicou e credibilizou.

Tendo em conta os destinatários, o documento destinar-se-á a ser útil a quem combate o terrorismo e a quem recolhe e sistematiza informações (intelligence). Que se diz que ele diz? Tudo e nada. Tudo o que nos possa vir à cabeça depois de uns estímulos à imaginação. Não estou a exagerar. Nem um, nem dois, nem três, nem quatro… são dez os cenários para explicar os desaparecimentos de Tancos: tráfico para a Guiné-Bissau ou Cabo Verde, mercenários ao serviço de radicais islâmicos do norte de África, separatistas da Córsega, grupos de jiadistas ao serviço do Daesh, máfias da rota dos Balcãs, grupos de seguranças da noite portuense, homens especializados em assaltos a bancos e a carrinhas de transporte de valores, a empresa que fez reparações na vedação… Mas não fica por aqui.

Diz o Expresso que são ainda referidas «suspeitas de uma encenação do assalto». Lembram-se do que dizia há poucos dias o ministro Azeredo Lopes: «No limite, pode não ter havido furto nenhum…» Encenação com que objectivo, diz o documento: «motivações políticas com vista à descredibilização do Governo, do ministro e do Chefe de Estado-Maior do Exército». Interessante.

Recordo, o «documento secreto» foi elaborado por militares, por serviços de informações militares (não se sabe quais) e destinou-se à PJ e ao SIS. Além dos numerosos e diversificados cenários, que deixou de mais «picante»? A política. Para decerto ajudar a PJ e o SIS, informados militares dedicam-se ao comentário político. O ministro revela uma «arrogância cínica», fez «declarações arriscadas e de intenções duvidosas» e a sua acção é pautada por uma «ligeireza, quase imprudente». O relatório militar critica também os chefes militares. O chefe do Exército é culpado de «não ter tirado consequências» das responsabilidades que assumiu. Não tem também «capacidade de liderança» e é «subserviente para com o ministro». Um documento militar, escrito num serviço de informações militares, que critica chefes militares e políticos e traça cenários variados e numerosos sobre o assalto a Tancos, incluindo o de não ter havido assalto. Um trabalho muito útil para combater o crime, já se vê…

Este «documento secreto» é ridículo, mas não é inocente. Muita imaginação para pouca utilidade. Os culpados vão da Mafia ao Daesh, passando pelos seguranças da noite do Porto… Mas pode não ter havido assalto! Quem o fez e divulgou sabe que não será responsabilizado. Sabe que é inútil para a investigação e a descoberta dos responsáveis. Faz um esforço curioso para espalhar pistas. 

O mais importante a retirar do relatório, que foi lido sem qualquer sentido crítico, é que o seu objectivo é claramente político: militares sem rosto a criticar o seu chefe e o Governo da República. O resto é nevoeiro para dissimular responsabilidades.
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