Angolano recupera em livro memórias dos dias passados na cadeia de Luanda

por Lusa

Lisboa, 16 jan (Lusa) - Carlos Taveira tinha 20 anos quando entrou na cadeia de São Paulo, em Luanda, um oásis de democracia que após o golpe de Nito Alves se transformou num espaço de horror, recorda, a propósito do lançamento do seu livro.

Mais de 40 anos depois, Carlos Taveira, um angolano descendente de portugueses em quarta geração, passou as memórias desses dias para o papel, num livro que será lançado, na quinta-feira, em Lisboa, e que o autor garante ser apenas um testemunho e nunca um exercício de ajuste de contas.

"Não se espere que seja um livro de denuncia ou polémico. É um livro de momentos, que mostra como os presos de vários processos, por vezes antagónicos, podem viver em democracia. O único sítio em que se vive em democracia numa ditadura é na prisão", disse Carlos Taveira, em entrevista à agência Lusa.

"São Paulo, Prisão de Luanda" é um testemunho na primeira pessoa, sobre a vida na maior cadeia da capital angolana, onde Carlos Taveira (Piri) foi parar, acusado de pertencer à Organização Comunista de Angola (OCA), criada em 1975 em oposição ao governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), liderado por Agostinho Neto.

No livro, que nunca pensou publicar, mas foi inspirado a escrever depois de ter lido "Estação das Chuvas" do escritor José Eduardo Agualusa, Carlos Taveira traça uma linha que separa o quotidiano na cadeia antes e depois da tentativa de golpe de Estado de 27 de maio de 1977, liderada por Nito Alves.

"Quando olho para trás e penso em tudo o que aconteceu, acho que, antes do golpe, estávamos [na cadeia de São Paulo] de férias", disse.

Nascido no Lobito, província de Benguela, Carlos Taveira, 66 anos, vive há mais de quatro décadas no Canadá para onde, na década de 80, fugiu da guerra e das dificuldades da vida na capital angolana.

Militante do MPLA, "incomodava-o" o "poder real" que a União Soviética tinha em Angola e, com a ingenuidade dos 20 anos, aproximou-se da OCA, defendendo uma mudança inspirada na Revolução Chinesa.

Com o processo de recrutamento para a OCA a decorrer, foi preso quando ia participar na primeira reunião da organização. Sem acusação formal, sem julgamento, ficou na cadeia durante dois anos e sete meses.

"Percebi que o poder não estava a brincar, o MPLA e o Agostinho Neto não estavam para tolerar nenhuma espécie de dissidência, não havia possibilidade de diálogo", disse sobre os pensamentos que o assolaram na altura.

"Quando fomos presos, já andavam atrás dos seguidores de Nito Alves e serviam-se da OCA para os poderem prender. Por isso, havia na cadeia indivíduos acusados de ser da OCA que eram na realidade seguidores de Nito Alves", acrescentou.

Nito Alves, na altura ministro da Administração Interna e membro do Comité Central do MPLA, foi acusado de fraccionismo e de tentativa de um golpe de Estado pelo Governo de Neto, num episódio que culminou com a sua execução e a de milhares de supostos apoiantes.

Carlos Taveira viveu o episódio na cadeia de São Paulo, na altura controlada pela polícia política angolana (DISA).

"Foram quatro ou cinco horas debaixo de fogo de quatro blindados. Não sei como não morreu ninguém, só houve alguns feridos. Havia tanto fogo, um blindado forçou as portas e a guarnição da cadeia rendeu-se", conta.

A cadeia foi tomada pela nona brigada, alinhada com Nito Alves, e que entrou na cadeia, segundo Carlos Taveira, para libertar os apoiantes nitistas presos.

"Os presos deles iam saindo e nós ficamos. A dado momento, estávamos sozinhos na cadeia com um agente da DISA preso numa cela. Não podíamos fugir dali, era perigoso, não sabíamos como as coisas estavam", prosseguiu.

Desse dia, Carlos Taveira, recorda as palavras de Agostinho Neto chegadas via rádio:`Não vamos perder tempo com julgamentos, vamos ditar sentenças` e depois a retomada da cadeia.

"De repente, vinha uma coluna de blindados e tanques em direção à cadeia. Libertamos o agente da DISA, que foi para a frente da cadeia de braços no ar a dizer para não atirarem que só estávamos lá nós. Tomaram conta da cadeia pacificamente e meteram-nos nas celas de novo", relatou.

Para Carlos Taveira, "foi a partir daqui que começou o grande horror nas cadeias de Angola".

"Houve muitas execuções, muitas torturas, muitos indivíduos que morreram nas torturas. Ouvia as pessoas a gritar e, a dado momento, começaram a amordaçar os presos antes de os torturar porque os gritos ouviam-se fora da cadeia. Foi um pesadelo", recordou.

"Quando vinham, sabíamos que quem fosse levado nessa noite ia morrer. Vinham com uma ambulância a que chamavamos o `autocarro do amor`, apagavam-se as luzes, estava toda a gente nas celas e não sabíamos quando podíamos ser nós. Uma vez estava a jogar xadrez com uma indivíduo que foi chamado", continuou.

"Foram momentos horríveis, de gritos durante noites e noites. Era a crueldade humana naquilo que tem de pior", acrescentou.

Tal como tinha sido preso, Carlos Taveira foi libertado, acredita que por pressão internacional, cerca de um mês antes da morte de Agostinho Neto.

Saiu, mas Luanda apenas lhe parecia numa cadeia de maiores dimensões, por isso, oito anos depois deixou o país, onde nunca mais voltou.

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