Marisa Matias: Defesa da democracia está em jogo nas próximas eleições europeias

por RTP
"Nesta campanha estão muitas coisas em jogo, desde logo a defesa da própria democracia", afirma Marisa Matias Mário Cruz - Lusa

A cabeça de lista do Bloco de Esquerda (BE) alerta que é "a defesa da própria democracia" que está "em jogo" na próxima campanha eleitoral. Numa entrevista à Agência Lusa, Marisa Matias admite que o Parlamento Europeu poderá sair profundamente transformado nas próximas eleições de 26 de maio, devido ao crescimento “das forças progressistas” e rejeita que o BE seja um partido populista.

Na primeira grande entrevista concedida após ter sido escolhida novamente para liderar a lista do BE às eleições europeias, considera que "é também da própria defesa do Estado de direito” que está em jogo.

“Estamos numa fase em que é preciso defender os direitos mais básicos e mais fundamentais que nós julgávamos adquiridos", afirma, dando como as "questões dos direitos humanos fundamentais e de igualdade, da proteção dos migrantes", declarou à Lusa.

A eurodeputada do BE, que se candidata ao Parlamento Europeu pela terceira vez, admite que "a democracia se viu muito limitada nos últimos anos", tal como "a capacidade de decisão dentro dos próprios Estados-membros" pelas imposições de Bruxelas, continuando essa a ser uma "luta fundamental que tem que ser feita".
Defesa do Estado social, dos serviços públicos e alterações climáticas
Rejeitando falar de números a atingir como meta eleitoral, a atual eurodeputada admite que tem "o objetivo de aumentar a representação". Neste momento, o BE é representado unicamente por Marisa Matias, depois de em 2014 ter perdido os dois eurodeputados eleitos em 2009.

Além de mais eurodeputados, a cabeça de lista do BE quer a “defesa do Estado Social e dos serviços públicos”, áreas que registam um "cruzamento profundo entre a política europeia e a política nacional”.

"Eu creio que a democracia, o Estado de direito, a luta por maiores espaços e esferas de soberania no que diz respeito à decisão das políticas nacionais, fugir a esses garrotes dos tratados e a questão das alterações climáticas são eixos fundamentais na campanha que vai começar", resume.
Ameaça da extrema-direita
A ameaça do crescimento significativo de partidos da extrema-direita é real e poderá alterar significativamente a representação parlamentar europeia após 26 de maio, alerta a cabeça de lista do Bloco de Esquerda.

Para Maria Matias, já assistimos "em Portugal a uma recomposição do espaço político e do espaço político-partidário (mas) não ainda a níveis de recomposição que assistimos no quadro da União Europeia", onde “as famílias fundadoras e as famílias mais tradicionais desta construção europeia" estão sob ameaça.

"Nós estamos na iminência de assistir a um colapso da social-democracia à escala europeia e também a impactos muito significativos na chamada democracia-cristã, que é onde estão representadas as forças políticas de direita portuguesas", alerta.

Na opinião da eurodeputada, o momento é de escolhas para o PSD ou CDS-PP, uma vez que "partilham o mesmo grupo parlamentar", o Partido Popular Europeu (PPE), com um partido de extrema-direita oriundo da Hungria.

"Ou de facto se separam da extrema-direita (...) e terão um custo eleitoral, mas não um custo do ponto de vista de credibilidade", ou "continuarão este caminho de abrir as portas à extrema-direita no espaço europeu", aponta Marisa Matias.

O facto de a extrema-direita não estar a ter tanto impacto em Portugal, deve-se na perspetiva de Maria Matias à "solução governativa que se encontrou e do acordo parlamentar, a social-democracia não sofreu tanto". "Terá provavelmente muito que agradecer à esquerda deste país", sugere.

Nas eleições europeias de 2014, uma das grandes surpresas foram os dois mandatos conseguidos então pelo MPT, na lista encabeçada pelo antigo bastonário da Ordem dos Advogados Marinho e Pinto.

Sobre a possibilidade do partido liderado pelo antigo primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, Aliança, poder ter o mesmo efeito de Marinho e Pinto nas eleições de maio, a eurodeputada bloquista considera que "ainda está muita coisa em aberto até às europeias".

"Nós não sabemos exatamente quais são os novos partidos que vão concorrer e a introdução de novos partidos traz sempre alterações", alega.

Apesar da incógnita, Marisa Matias afasta a possibilidade que "o efeito seja o mesmo", considerando que o tipo de eleitorado que votou em Marinho e Pinto em 2014 pode não ser "exatamente o mesmo" da Aliança.
“Bloco não é um partido populista”
A recomposição do Parlamento Europeu vai passar pelo crescimento das "forças progressistas" e pela "implosão do bloco central", estima a eurodeputada.

"Eu compreendo que, quando o debate eleitoral aquece, se entra em facilitismos dessa natureza e se chama populismo ao que não é. O Bloco não é um partido populista", assegura Marisa Matias.

Na perspetiva da eurodeputada, as eleições do dia 26 de maio vão resultar em maior fragmentação do Parlamento Europeu, com "forças partidárias ou grupos parlamentares mais iguais entre si em termos de dimensão", ao contrário do atual, em que "dois grupos parlamentares (centro-esquerda e centro-direita) podiam fazer a maioria", juntando-se num bloco central.

Marisa Matias sublinha que há "uma transformação profunda" na política europeia cuja "dimensão e alcance é difícil de prever", mas acredita que "há margem para um crescimento e um reforço significativo das forças políticas progressistas europeias", constituídas por partidos de esquerda e partidos associados ao grupo parlamentar dos Verdes.

Estas forças políticas "têm uma agenda que é de confrontação e distinção total em relação à extrema-direita, que na realidade não propõe nada de novo em termos de política económica e que contribui muito para a desintegração do espaço europeu".

Marisa Matias acredita que a extrema-direita vai aumentar a sua representação no PE porque "lhes foram sendo abertas portas" por partidos tradicionais "que foram deixando entrar a agenda da extrema-direita" no seu discurso.

Contudo, espera que "não cresça o suficiente" e seja possível "fazer alianças democráticas para impedir que essas políticas vinguem".

Por outro lado, prevê "uma implosão do bloco central". "Isso não é uma previsão, é uma constatação daquilo que está a ser a trajetória" de pesadas derrotas eleitorais dos partidos sociais-democratas em França, na Alemanha, na Itália, na Holanda, nos países nórdicos ou até em Espanha, que "já não é um sistema bipartidário", acrescenta.

"A social-democracia colapsa porque cedeu à economia de mercado, cedeu ao ideal do neoliberalismo e deixou fugir a defesa do Estado social das suas mãos", justificou a eurodeputada do BE.

"Prova-se, portanto, que a manutenção de políticas claras e de reais opções políticas para a vida das pessoas tendem a favorecer mais as forças políticas honestas consigo próprias, com o seu programa, com a sua história, do que tentar vender um ideário que não faz outra coisa a não ser destruir um projeto comum", argumenta.

A Europa está "no meio de um turbilhão, de uma tempestade", "um momento muito difícil de desintegração", o que pode explicar porque vários dos partidos portugueses apostaram na continuidade dos eurodeputados que os representam, como é caso do BE.

"Neste momento a experiência pode contar. Não é apenas a necessidade de renovação, que existe sempre, mas é um momento muito particular, em que aos fatores de desintegração relacionados com a política económica se juntam outros que advêm precisamente de uma agenda que está nos antípodas de uma Europa solidária ou que sequer possa almejar algum sentido de coesão e de defesa dos direitos mais fundamentais", declarou, durante a entrevista à Agência Lusa.
Desafio ao PS: escolher posição sobre Tratado Orçamental
Para Maria Matias, o Tratado Orçamental é um dos temas “mais importantes”, sendo particularmente crítica daquilo que considera ser a contradição do PS. A eurodeputada insta mesmo os socialistas a clarificarem se levam à campanha o partido do Governo ou o do Parlamento Europeu.

"O PS, em relação ao Tratado Orçamental, vai ter que escolher qual é que vai trazer à campanha. Se traz o PS de Mário Centeno e do Governo ou se traz o do Parlamento Europeu que votou para a não integração do Tratado Orçamental no direito comunitário e bem, do meu ponto de vista", desafia.

Marisa Matias evoca ainda a campanha eleitoral de 2014, em que o então líder do PS António José Seguro "dizia que se o PS rejeitasse ou tivesse uma posição contrária ao Tratado Orçamental era a mesma coisa que pôr Portugal fora do euro".

Em novembro passado, foi chumbada no Parlamento Europeu a transposição para o direito comunitário do Tratado Orçamental. Este resulta de um acordo entre os governos europeus e fixa os limites do défice, da dívida e do esforço de consolidação, bem como as sanções por incumprimento dos mesmos.

Na perspetiva da eurodeputada, a rejeição deixa "os países mais livres para se desvincularem unilateralmente".
A nível nacional: “Exigir (ao PS) o que não foi feito”
Apesar da derrocada nas eleições europeias de 2014 – em que o partido perdeu dois lugares -, o BE cresceu nas eleições presidenciais, de novo com Maria Matias como candidata, e nas eleições legislativas.

Questionada pela Agência Lusa sobre se o contágio da "geringonça" - solução política que garante o apoio parlamentar ao Governo minoritário do PS por todos os partidos de esquerda (BE,PCP,PEV) - será positivo ou negativo para o Bloco, a eurodeputada assume que não sabe a resposta.

"Se nós olharmos para aquilo que foi o resultado objetivo desta solução, a tendência seria dizer que beneficiaria, porque o plano económico que foi aplicado em Portugal, as opções políticas que foram decididas estão muito longe daquilo que era o plano macroeconómico apresentado pelo PS às eleições de 2015", teoriza.
Marisa Matias reivindica que foram "desses compromissos que resultaram as melhorias mais significativas para a vida dos portugueses e das portuguesas".

No entanto, a dirigente do BE admite que “a leitura das pessoas pode ser diferente e havendo um Governo minoritário pode haver essa tendência para que seja o partido do Governo a capitalizar mais do que os outros que se juntaram nesta solução”.

Por considerar que "está tudo em aberto”, a eurodeputada alega que cabe ao BE “também fazer essa disputa, não só por aquilo que foi o papel e uma marca real do Bloco nos últimos anos nas mudanças em Portugal, mas também exigir o que não foi feito".
UE não aprendeu nada com experiência portuguesa
Os elogios na União Europeia (UE) ao desempenho da economia portuguesa não se traduziram em qualquer mudança na política económica comunitária, lamenta a cabeça de lista do BE às próximas eleições europeias de 26 de maio.

"Nem uma vírgula foi alterada nos tratados por causa da experiência que se viveu em Portugal", criticou.

Maria Matias considera que "a maior frustração" do mandato que está a terminar foi, enquanto membro da Comissão de Assuntos Económicos e Monetários, perceber que a UE não aprendeu "rigorosamente nada com a crise".

A eurodeputada nota que a reversão de cortes em Portugal "foi feita em confrontação com o que está escrito nos tratados", o que faz do caso português "a exceção e não a regra". "Nem mesmo comprovando que o que era preciso era aumentar os salários e não esmagá-los, e não reduzir os direitos laborais, como são as recomendações europeias", sublinha.

Perante as mudanças previstas nas políticas para tentar salvar o euro do Banco Central Europeu (BCE), que deverá provocar uma subida das taxas de juro, a UE está "na iminência de uma próxima crise". Nesse cenário, "quem vai sofrer na pele são os países periféricos", avança Maria Matias.

"Mesmo aqueles, como Portugal, que ao contrário do que seria de esperar tiveram um crescimento económico acima da média e conseguiram reduzir 10 pontos percentuais na dívida pública", continuam confrontados com uma dívida "ainda impagável" numa UE em que "nada foi feito para que se controlasse verdadeiramente" este problema.

Além disso, Maria Matias alerta que o crescimento da economia portuguesa, "não está consolidado o suficiente (...) para aguentar o embate".

"Assistimos nos últimos anos a enormes desequilíbrios macroeconómicos, as economias periféricas a serem esmagadas, o que foi feito com a Grécia, com Portugal, e creio que se há uma lição que se pode retirar é que quando se procura sacrificar o país em nome de um acordo com a UE, a única coisa que resta é o sacrifício do país porque a UE não vai cumprir esse acordo", acusa. Exemplo disso são as sanções por incumprimento do défice, em que "os critérios do défice não são iguais para todos".

Marisa Matias admite ainda que a ação do Parlamento Europeu, nesta legislatura, para uma "verdadeira regulação do sistema financeiro" não levou a mudanças efetivas.

"Tivemos várias comissões de inquérito e comissões especiais em relação às políticas fiscais, políticas de evasão e de elisão fiscal, à existência de paraísos fiscais dentro da própria UE. Houve resultados muito importantes desse trabalho e as consequências foram zero", critica.

"É uma frustração enorme perceber como é que ao longo destes dez anos, e eu entrei no PE precisamente na sequência da grande crise financeira, que se converteu numa crise económica e numa crise social (...), foram dez anos de falsas promessas e da constatação que, no essencial, ninguém estava muito interessado em mudar a natureza da construção e da integração europeia que conhecemos até agora", lamenta.
May devia deixar cair linhas vermelhas relativas à proteção dos trabalhadores
Na perspetiva de Marisa Matias, a primeira-ministra britânica "não teve nenhuma capacidade" para lidar com o 'Brexit'. "Sinceramente nunca vi ninguém tão mal preparado para lidar com este dossier como as autoridades britânicas e a senhora Theresa May. Não teve nenhuma capacidade de lidar com isto", criticou.

A eurodeputada considera que "deve ser respeitada a vontade do povo britânico" de abandonar o projeto europeu. "Não há nenhuma razão para castigar o povo britânico por ter escolhido sair, independentemente da nossa opinião pessoal. É uma decisão que foi tomada, que já divide o próprio Reino Unido, não é a UE que deve dar lições", sublinha.

No entanto, é mais crítica da posição assumida pela primeira-ministra britânica em relação à "proteção dos direitos dos trabalhadores".

"É inacreditável (May) colocar como linha vermelha das negociações a igualdade de direitos aos trabalhadores europeus no Reino Unido", refere, para depois sublinhar que trabalham no Reino Unido 3,5 milhões de europeus e 1,5 milhões de britânicos noutros Estados-membros da União Europeia (UE).

"É impensável. E, como é óbvio, a UE está bem quando diz que o acordo tem de dar igualdade de condições aos trabalhadores europeus", defende.

Marisa Matias afirma que para um prolongamento do prazo de negociações, hipótese aventada na sequência do chumbo em Westminster ao Acordo de Saída do Reino Unido, "tem que haver vontade das duas partes para continuar a negociar", o que pode passar "por uma mudança por parte das autoridades britânicas", como "deixar cair algumas das linhas vermelhas, e, em particular, a da proteção dos trabalhadores europeus".

"Não creio que seja legítimo que a UE diga que vamos abrir espaço para retardar as negociações, e portanto atrasamos mais uns meses, mas, da nossa parte, esse espaço é para que pensem melhor, porque não vamos mudar rigorosamente mais nada porque este é o melhor acordo possível", sustenta.

Uma eventual saída do Reino Unido da UE sem acordo seria "mau para todas as partes", embora a decisão de "enviar uma missão aos 27 países da UE para começar a definir e a propor possibilidades de diálogo bilateral" mostre que é cada vez mais provável, considera.

Nessa perspetiva, defende que o Governo de Portugal "já devia estar a negociar a nível bilateral", ou "a preparar essas negociações", "para proteger a comunidade emigrante portuguesa e dar igualdade de proteção aos britânicos em Portugal".

C/Lusa
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