Paisagem da Suíça contemporânea: Roxy filmado por Godard


joao lopes
10 Jan 2015 0:00

Quantas dimensões tem o cinema? E quais? Visual? Narrativa? Simbólica? Emocional? Transcendental?… Digamos que no nosso presente a pluralidade do cinema se estreitou, já que assistimos ao triunfo do 3D. Apenas três dimensões? — eis o que parece perguntar Jean-Luc Godard com o genial "Adeus à Linguagem" (Prémio do Júri de Cannes/2014, ex-aequo com "Mamã", de Xavier Dolan).

Para Godard, o 3D não é um acréscimo figurativo, mas um equívoco conceptual — para quê "acrescentar" uma dimensão a algo (o ecrã da sala escura) que sabemos que é plano? Daí que ele se permita usar o formato, não como um suplemento de expressão, antes como uma possibilidade de fazer regressar o cinema ao gesto primordial do homem da câmara que filma o seu próprio universo — como é o lugar onde vivo?

E esta pergunta é, antes do mais, para ser tomada à letra, sem sentidos ambíguos. Tal como na maior parte dos filmes que realizou depois do autobiográfico "J.L.G. por J.L.G." (2004), "Adeus à Linguagem" é uma deambulação pela zona de Rolle, na Suíça, onde Godard habita — com o cineasta devidamente acompanhado pelo seu cão Roxy.
Ao mesmo tempo, trata-se de retomar uma antiga obsessão temática: a de saber como se constitui (ou não) um par homem/mulher. Como está escrito no começo da sinopse proposta pelo próprio Godard:  "Uma mulher casada e um homem solteiro encontram-se, amam-se, discutem, separam-se (…)".
A partir daí tudo é possível — porque as atribulações do par se transfiguram em reflexão sobre o que passa (ou não passa) numa relação humana; e também porque o cinema, linguagem específica e método de integração de outras linguagens (pintura, música, etc.), permanece fascinantemente em aberto. De tal modo que, entre a intimidade de dois corpos e a discussão dos impasses culturais da nossa Europa, tudo ecoa em "Adeus à Linguagem".
Em boa verdade, o 3D está longe de ser o único instrumento exótico que Godard aplica em "Adeus à Linguagem". O cineasta que, um dia, filmou a possibilidade da redenção num filme intitulado "Viver a Sua Vida" (1962), continua a acreditar que o cinema é, não um mero "gadget" (não há nada aqui que tenha a ver com a adoração beata dos "efeitos especiais"), mas sim um universo que se reinventa também através das técnicas.
Daí que, desde as pequenas câmaras que serviram para colher as imagens "amadoras" do filme, até à utilização (pelas mãos do próprio Godard) de telemóveis, "Adeus à Linguagem " seja um filme de milagrosa redescoberta do cinema como acto de observação e discussão do mundo e da sua ordem. Também da sua desordem. Enfim, do regresso a alguma ordem.

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