A notícia chegou, ainda de forma dúbia no início, depois brutal como todas as coisas irreparáveis: a Ana Margarida Falcão faleceu.
Conheci-a no Funchal, naqueles anos entre 1996 e 2006 em que a cidade se tornou um espaço de trocas e descobertas, à margem do «jardinismo» que tanto empolgava os jornais e as televisões de Lisboa. O Encontro (1996) e depois os Colóquios internacionais promovidos pela Câmara Municipal constituíram uma das mais enriquecedoras e estimulantes experiências culturais em que pude participar, pela continuidade e também pela diversidade de temas e contributos trazidos dos mais diferentes centros universitários e de investigação insulares, europeus, africanos e americanos.
Havia as «mulheres da cultura» da Câmara Municipal: a Maria Aurora, a Teresa Brazão, a Maria da Paz E havia também os/as docentes da Universidade da Madeira.Foi por aqui que entrei em contacto com a Ana: vi-a sempre «circular» subtilmente pelos Colóquios como alguém para quem eles eram muito mais do que o momento das suas, dela, comunicações. E mesmo estas traziam a marca inconfundível de quem reconhece que aquilo que sabemos é apenas um grão de areia no universo do que desconhecemos (e a alusão pascaliana vai assim deliberadamente). A Ana era isto e também a elegância de trato e a atenção prestada à palavra dos outros.
Entre 2006 e 2015 muita água correu sob as pontes dos Açores. No final deste último ano, voltámos a encontrar-nos no Funchal por ocasião do Colóquio INSULA – eu na minha recente condição de investigador do CIERL-UMa (na sequência de um convite que me fora endereçado da Universidade da Madeira, por proposta da Ana Salgueiro – mais um gesto de lá que não poderei esquecer).
A Ana Margarida passara por várias lutas contra a doença que a debilitara, mas mantinha aquela serenidade só dela e que lhe permitia falar e escutar os outros com o olhar para lá do espaço e do tempo. Numa das tardes, mudei de sala das sessões para poder ouvi-la discorrer apaixonadamente sobre Almada Negreiros.
Apesar dos cuidados e das restrições impostas pelo seu estado de saúde, saiu de casa naquela noite em que a Leonor e o Thierry ofereceram um jantar a um grupo de amigos. Na foto em que o António Fournier registou esse óptimo momento de amizade e convívio, a Ana está atrás de mim, com um ar cansado que ela comentaria em e-mail: «Gostei imenso de receber a fotografia deste tão agradável e bem disposto jantar que a Leonor e o Thierry nos proporcionaram. Só tenho pena de não ter ficado a sorrir na fotografia, pois estava mesmo bem disposta e a sentir-me bem…» Despedimo-nos nessa noite, sem sabermos que o «até breve» se tornaria um «até sempre».
O «até breve» podia ter sido a minha ida ao Funchal em Maio já deste ano, para estar presente na Feira do Livro durante a apresentação dos Cadernos de Santiago, a excelente colectânea de poetas madeirenses organizada por ela própria, por José de Sainz-Trueva, Irene Lucília Andrade, Leonor Martins Coelho e Thierry Proença dos Santos e na qual colaborei com um posfácio. Ainda trocámos algumas mensagens sobre a eventualidade da minha deslocação, que as aulas e a burocracia do ofício inviabilizaram por completo.
No início de Agosto, os telejornais encheram os ecrãs e as nossas casas com as imagens devastadoras do incêndio no Funchal. Telefonei para alguns amigos, enviei mensagens a outros, na tentativa de saber notícias sobre a situação de cada um deles. A mensagem para a Ana ficou já sem retorno. A notícia de hoje é a pior resposta que eu podia ter recebido.
Urbano Bettencourt