6 Mai 2023 20:13

Na conferência de imprensa do Festival de Veneza, Alice Diop falou sobre o impacto social que o caso provocou, e de como percebeu que no banco dos réus, estavam também questões muito femininas: “Todas as mulheres falavam do caso, de um ponto de vista pessoal. Foi isso que me convenceu que havia qualquer coisa nesta história, de profundamente universal. Qualquer coisa para além da violência e dos detalhes sórdidos que ouvíamos todos os dias. Este filme, era na realidade um recetáculo para alcançar qualquer coisa mais vasta, como a maternidade.”

O clássico drama de tribunal ganha contornos diferentes nas mãos de Alice Diop que conta a história através do olhar de outra mulher, uma professora universitária, que está a tentar escrever um livro inspirado no caso, e também ela no inicio de uma gravidez que ainda não aceitou por completo.

Para a realizadora, esta história verídica tornou possível colocar em cena, o que é raro no cinema: “Tinha uma grande vontade de colocar em cena e filmar a história de duas mulheres negras complexas. Queria encontrar a forma certa para filmar o que era quase uma novidade, porque não vejo isto muitas vezes no cinema, em que podemos ver realmente toda a complexidade, que na maior das vezes escapa, a tudo o que é esperado.”

“Saint Omer” é um filme de palavras, passado maioritamente no tribunal onde Laurence assume a autoria do crime, mesmo que não se sinta culpada. Nos depoimentos da jovem promissora estudante de filosofia, há uma dimensão mística, que atribui a responsabilidade pelo que aconteceu, a forças maiores do que ela. Alice Diop trabalhou o argumento a partir dos testemunhos reais da mulher acusada, que por vezes pareciam material literário: “quando ela conta o que aconteceu, com todos os detalhes que a levaram a matar a sua criança, de forma muito demorada e literária, acho que isso fez com que nós a conseguíssemos ouvir e compreender. Cheguei a questionar-me se ela não tinha ficcionado tudo aquilo, tal era o teor novelesco e literário.”

O poder das palavras é levado ao extremo por Alice Diop, que quis criar um espaço para várias interrogações: ”Acho que é um filme generoso com os espectadores porque oferece a possibilidade de navegarem nos seus sentimentos. Não há uma só verdade sobre a Laurence. Não quis forçar um discurso, nem na escrita do argumento, nem na rodagem, nem na montagem. Quis criar um espaço que não fosse meu, para que possam aparecer todas as emoções quando escutamos esta mulher. Acho que a duração dos planos permite isso. Permite duvidar das certezas, passar de um estado para outro. De sentirmos que está emocionada, ou que está totalmente fria e distante, que mente e manipula (…) Não há só uma verdade, cada espectador pode descobrir a sua verdade, em função do que sente.”

Depois do Grande prémio do Júri do festival de Veneza, onde recebeu também o Leão de melhor primeira obra, “Saint Omer” foi um dos filmes em destaque no ano passado, galardoado em Toronto, ou nos prémios do cinema francês.

Depois de já ter conquistado atenção internacional enquanto documentarista, Alice Diop faz a estreia em ficção, com um filme arriscado e pouco comum. Uma obra que nasce de uma tragédia real, mas que mantém o foco nas questões que sempre interessaram esta cineasta de raízes senegalesas: a mulher negra, a imigração africana, e as batalhas diárias de quem deixa o pais onde nasceu à procura de uma vida na Europa.

“Saint Omer” já está em exibição nas salas portuguesas.

  • Lara Marques Pereira
  • 6 Mai 2023 20:13

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