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Binoche no país de Assayas

A actriz Juliette Binoche e Olivier Assayas, argumentista/realizador especialista das matrizes melodramáticas, voltam a ter um encontro artisticamente feliz — "Vidas Duplas" tem como pano de fundo o mundo da edição dos livros.

Binoche no país de Assayas
Juliette Binoche em "Vidas Duplas" — por amor do melodrama
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 Binoche no país de Assayas
Vidas Duplas Alain, um editor parisiense, procura adaptar-se ao novo mundo, cada vez mais dominado pela tecnologia. O mesmo acontece com todos à sua volta, a começar pela sua mulher Selena, actriz numa popular série que não lhe traz realização pessoal, e por Léonard, o amigo escritor sem sucesso, subitamente forçado a comentar cada vez menos os seus novos romances e mais as guerras no Twitter, que parecem ...

O país criativo de Olivier Assayas é o país dos actores. Ou melhor, essa paisagem instável e sedutora em que uma história que se quer contar começa a ser contada pelos actores, através do trabalho dos actores.

Juliette Binoche define o seu trabalho com Assayas a partir de um princípio de "confiança". Recentemente, em entrevista ao jornal "Le Monde", citava a sua colaboração anterior, "As Nuvens de Sils Maria" (2014), como um momento decisivo: "(...) contribuiu para o enraizamento da nossa relação, já que aí tivemos tempo de desenvolver as emoções, a linguagem, de nos conhecermos melhor."

O mínimo que se pode dizer de "Vidas Duplas" é que se trata de uma bela consolidação de tal confiança, distinguindo-se por esse misto de espontaneidade e elaboração que, na história do cinema francês, tem Jean Renoir (1894-1979) como referência tutelar. Assim, para fazer o retrato de um editor de livros (Guillaume Canet) e da actriz com quem é casado (Binoche), Assayas consegue a proeza de reavivar as emoções — e também a precisão social — da mais genuína tradição melodramática.

Os resultados são tanto mais interessantes quanto Assayas, desde logo como argumentista, sabe definir as suas personagens, incluindo o escritor caído em desgraça junto do seu editor (Vincent Macaigne), a partir de um pano de fundo com actualíssimas ressonâncias — esta é, de facto, uma história de fidelidades e traições, amor incerto e sexo desencantado, que surge enredada nas contradições de um tempo em que o livro enquanto objecto de papel está ameaçado pelas novas formas de difusão digital.

"Vidas Duplas" não é uma tese sobre tal conjuntura, evitando também enredar as personagens em matrizes dramáticas ou de classe social mais ou menos previsíveis. O que mais conta neste cinema é a possibilidade de depararmos com gestos e emoções, comportamentos e pensamentos em estado nascente. Dir-se-ia que deparamos com uma reportagem sobre relações profissionais e amorosas — na verdade, estamos perante o mais clássico e depurado labor de ficção.

Crítica de João Lopes
publicado 22:23 - 28 fevereiro '20

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