Fernando Léon de Aranoa com Javier Bardem no Festival de San Sebastian em 2021 (ANDER GILLENEA, AFP via Getty Images)

19 Jan 2022 19:21
Esta semana estreia em Portugal o filme "O Bom Patrão", recordista com 20 nomeações para os Prémios Goya da academia espanhola de cinema. O CINEMAX falou com o realizador a propósito do tema do filme, do seu protagonista, o ator Javier Bardem, e sobre as hipóteses de um Oscar.

Ficou surpreendido com as nomeações para os Goya?

Sim, 20 são muitíssimas, não podia esperar algo semelhante… é um recorde, nunca sucedera. É verdade que tínhamos a esperança de que podia ser nomeado porque o filme quando estreou no festival de San Sebastian foi recebido de forma muito calorosa pela crítica e pelo público e a própria academia norte americana de cinema tinha pré-seleccionado o filme como representante espanhol ao Óscar de melhor filme internacional, contávamos que teria nomeações, mas não com tantas. É uma grande surpresa, uma maravilhosa surpresa que tenham sido nomeados oito actores, é quase o elenco todo.

Como se explica o êxito?



Não sei se existe uma fórmula, o filme fala de realidades que nós conhecemos, de um ecossistema de trabalho, de como as relações pessoais e profissionais se misturam. É uma fábrica industrial de balanças e é um lugar onde acontece um certo abuso de poder, não só por parte do patrão, também entre os trabalhadores. É um ecossistema onde as relações pessoais e profissionais estão muito viciadas e eu creio que todos conhecemos isso muito bem. Além disso, é uma sátira, o filme tem elementos dramáticos e também tem humor, um humor ácido, obscuro. A mistura de humor e drama foi bem recebida pelas pessoas, penso que elas gostaram do tom.

Javier Bardem é o patrão, é um chefe carismático. Como o apresentas?

Creio que Javier interpreta o bom patrão de forma carismática, como dizes, tem muito talento para levar as pessoas onde quer. É um chefe intrometido na vida dos seus trabalhadores quando os vê inquietos e distraídos, aborda os problemas pessoais deles, mete-se até nos problemas sentimentais deles, indo mais longe do que um chefe deveria ir. Interessava-me essa ideia de um chefe paternalista e demasiado metediço que tem o objectivo final de que as coisas corram bem e cujo objetivo último é que as coisas na empresa corram bem, que a produção funcione e obtenha os benefícios que deseja. É alguém que tem um certo poder sobre as pessoas que o rodeiam e depois não hesita em deixá-las cair.

É um patrão paternalista. O filme é inspirado num patrão e numa fábrica?

Há muitos! Penso que há muitos, muitas histórias reais em muitos locais de trabalho. O paternalismo não sucede só nas relações laborais, também acontece nas relações pessoais e sentimentais, onde há uma estratégia de dominação e de controlo. Não me baseei numa história concreta, mas conheci trabalhadores que passam por isso e um empresário que fazia isto que vemos no filme. Um dia contou-me que estava preocupado com um trabalhador porque estava distraído no trabalho por causa de problemas sentimentais e ele apresentou-lhe outras mulheres, o que me pareceu uma ideia muito louca! Podia ser divertida, mas servia para contar algo mais sério e abordar esta ideia de abusar dos trabalhadores.

É uma sátira política – existe um contexto que justifique este tema?

Diria que este tipo de práticas laborais em que o trabalhador está em desvantagem é habitual… por vezes reduz-se o emprego através da precariedade do trabalho, ao trocar certos serviços por tarefas de pior qualidade. As reformas laborais recentes em Espanha conduziram a essa precariedade e ao despedimento dos trabalhadores. Isso vê-se no filme, a precaridade do trabalho é a paisagem, mas interessava-me mostrar que os trabalhadores também têm culpa do que sucede, porque não existe entre eles uma relação de solidariedade, não existe uma identidade de classe que permita estarem juntos e defenderem-se quando há este tipo de problemas. Cada um olha por si, são individualistas, há muita concorrência, o que a própria empresa favorece, claro. Interessava-me contar isto, quando não há apoio nem solidariedade tudo fica mais difícil. Há uma personagem que é um trabalhador que foi despedido e acampa em frente da fábrica em protesto, e ele fica muito só porque ninguém vai ao seu encontro para o cumprimentar ou perguntar o que precisa, porque todos têm medo de serem despedidos.

O que marca as relações laborais: ambiguidade, impunidade, ambos?

Talvez as duas coisas. A impunidade existe porque em ambientes como este que vemos no filme, num microcosmos onde não existe união, os trabalhadores não têm ferramentas para se defenderem do poder. E a ambiguidade também porque muitas formas de poder exercem-se de outras maneiras, através das redes sociais, quando alguém averigua se um trabalhador saiu à noite, foi a uma festa, se tem namoradas, se uma trabalhadora está grávida. A linha da intimidade e da esfera pessoal é ultrapassada muitas vezes e esses factores são considerados na hora de empregar alguém. É a despersonalização das relações laborais que também me interessa. E agora, com a pandemia, muitas pessoas trabalham através de aplicações e devemos pensar como isso se reflecte nas relações de trabalho. Se, por vezes, é difícil defender um companheiro, torna-se muito mais difícil quando não o conhecemos porque cada um de nós está a trabalhar na sua casa e isso dificulta o fortalecimento dos laços entre as pessoas.

O patrão é um fabricante de balanças. Para ter êxito económico há que calibrar tudo muito bem?

Ele faz o contrário! (risos) Coloca algo colado debaixo do prato para que a balança acuse o peso que ele quer. Gosto muito da metáfora das balanças porque são objectos que fazem parte das nossas vidas, estão no supermercado, por exemplo. E pensei… alguém fabrica isso. Podia ter pensado noutro produto, a história também funcionava, mas num tempo em que falamos tanto de equilíbrio, equidade, a balança acaba por ser esse símbolo universal e, por isso, agradou-me colocar esse símbolo num lugar tão desequilibrado e onde as relações estão descompensadas. No filme vemos uma balança na entrada da fábrica que é a primeira balança fabricada há mais de 50 anos e está mal calibrada, o que incomoda muito o patrão porque eles fabricam balanças e não podem ter uma distorcida na entrada.

Javier Bardem sempre foi o patrão?

Eu comecei como argumentista e nunca podia pensar primeiro nos atores porque não ia dizer ao realizador, ou ao produtor, qual seria o ator. Portanto, escrevo a pensar no vazio, como se fosse uma personagem inexistente. Quando concluí o argumento do filme tornou-se evidente que poderia ser Javier Bardem porque já trabalhara com ele, é maravilhoso, e pensei que podia dar carisma, força, humor, também mesquinhez, a esta personagem, ele podia fazer essa composição.

E a nomeação para o Óscar de melhor filme internacional?

Não espero nada! O filme integra a short list de 15 filmes, foi escolhido após uma selecção inicial num conjunto de uma centena de filmes. Eu e o Javier Bardem estamos a trabalhar mostrando o filme em colóquios para o explicar e defendê-lo. Temos confiança porque fala de temas importantes com humor, mas há outros filmes bons que foram aplaudidos em festivais europeus. Estou consciente da dificuldade, mas não perco a esperança, com um pouco de sorte estaremos entre os cinco finalistas.

  • Tiago Alves
  • 19 Jan 2022 19:21

+ conteúdos