«O Bom Patrão» de Fernando Aranoa ou a mesquinhez e a ambiguidade nas relações laborais
Fernando Léon de Aranoa com Javier Bardem no Festival de San Sebastian em 2021 (ANDER GILLENEA, AFP via Getty Images)

Comédia  

«O Bom Patrão» de Fernando Aranoa ou a mesquinhez e a ambiguidade nas relações laborais

Entrevista exclusiva com o realizador Fernando Léon de Aranoa a propósito da estreia em Portugal do filme "O Bom Patrão" com Javier Bardem.

Trailer/Cartaz/Sinopse:
 «O Bom Patrão» de Fernando Aranoa ou a mesquinhez e a ambiguidade nas relações laborais
O Bom Patrão Ansiosamente a aguardar pela visita da comissão de trabalho para um prémio de excelência empresarial, o proprietário de uma empresa de fabrico de balanças industriais tenta resolver, em tempo record, os problemas dos seus trabalhadores para que nada manche a reputação da sua empresa na corrida ao prémio.

Esta semana estreia em Portugal o filme "O Bom Patrão", recordista com 20 nomeações para os Prémios Goya da academia espanhola de cinema. O CINEMAX falou com o realizador a propósito do tema do filme, do seu protagonista, o ator Javier Bardem, e sobre as hipóteses de um Oscar.

Ficou surpreendido com as nomeações para os Goya?

Sim, 20 são muitíssimas, não podia esperar algo semelhante… é um recorde, nunca sucedera. É verdade que tínhamos a esperança de que podia ser nomeado porque o filme quando estreou no festival de San Sebastian foi recebido de forma muito calorosa pela crítica e pelo público e a própria academia norte americana de cinema tinha pré-seleccionado o filme como representante espanhol ao Óscar de melhor filme internacional, contávamos que teria nomeações, mas não com tantas. É uma grande surpresa, uma maravilhosa surpresa que tenham sido nomeados oito actores, é quase o elenco todo.

Como se explica o êxito?

Não sei se existe uma fórmula, o filme fala de realidades que nós conhecemos, de um ecossistema de trabalho, de como as relações pessoais e profissionais se misturam. É uma fábrica industrial de balanças e é um lugar onde acontece um certo abuso de poder, não só por parte do patrão, também entre os trabalhadores. É um ecossistema onde as relações pessoais e profissionais estão muito viciadas e eu creio que todos conhecemos isso muito bem. Além disso, é uma sátira, o filme tem elementos dramáticos e também tem humor, um humor ácido, obscuro. A mistura de humor e drama foi bem recebida pelas pessoas, penso que elas gostaram do tom.

Javier Bardem é o patrão, é um chefe carismático. Como o apresentas?

Creio que Javier interpreta o bom patrão de forma carismática, como dizes, tem muito talento para levar as pessoas onde quer. É um chefe intrometido na vida dos seus trabalhadores quando os vê inquietos e distraídos, aborda os problemas pessoais deles, mete-se até nos problemas sentimentais deles, indo mais longe do que um chefe deveria ir. Interessava-me essa ideia de um chefe paternalista e demasiado metediço que tem o objectivo final de que as coisas corram bem e cujo objetivo último é que as coisas na empresa corram bem, que a produção funcione e obtenha os benefícios que deseja. É alguém que tem um certo poder sobre as pessoas que o rodeiam e depois não hesita em deixá-las cair.

É um patrão paternalista. O filme é inspirado num patrão e numa fábrica?

Há muitos! Penso que há muitos, muitas histórias reais em muitos locais de trabalho. O paternalismo não sucede só nas relações laborais, também acontece nas relações pessoais e sentimentais, onde há uma estratégia de dominação e de controlo. Não me baseei numa história concreta, mas conheci trabalhadores que passam por isso e um empresário que fazia isto que vemos no filme. Um dia contou-me que estava preocupado com um trabalhador porque estava distraído no trabalho por causa de problemas sentimentais e ele apresentou-lhe outras mulheres, o que me pareceu uma ideia muito louca! Podia ser divertida, mas servia para contar algo mais sério e abordar esta ideia de abusar dos trabalhadores.

É uma sátira política - existe um contexto que justifique este tema?

Diria que este tipo de práticas laborais em que o trabalhador está em desvantagem é habitual… por vezes reduz-se o emprego através da precariedade do trabalho, ao trocar certos serviços por tarefas de pior qualidade. As reformas laborais recentes em Espanha conduziram a essa precariedade e ao despedimento dos trabalhadores. Isso vê-se no filme, a precaridade do trabalho é a paisagem, mas interessava-me mostrar que os trabalhadores também têm culpa do que sucede, porque não existe entre eles uma relação de solidariedade, não existe uma identidade de classe que permita estarem juntos e defenderem-se quando há este tipo de problemas. Cada um olha por si, são individualistas, há muita concorrência, o que a própria empresa favorece, claro. Interessava-me contar isto, quando não há apoio nem solidariedade tudo fica mais difícil. Há uma personagem que é um trabalhador que foi despedido e acampa em frente da fábrica em protesto, e ele fica muito só porque ninguém vai ao seu encontro para o cumprimentar ou perguntar o que precisa, porque todos têm medo de serem despedidos.

O que marca as relações laborais: ambiguidade, impunidade, ambos?

Talvez as duas coisas. A impunidade existe porque em ambientes como este que vemos no filme, num microcosmos onde não existe união, os trabalhadores não têm ferramentas para se defenderem do poder. E a ambiguidade também porque muitas formas de poder exercem-se de outras maneiras, através das redes sociais, quando alguém averigua se um trabalhador saiu à noite, foi a uma festa, se tem namoradas, se uma trabalhadora está grávida. A linha da intimidade e da esfera pessoal é ultrapassada muitas vezes e esses factores são considerados na hora de empregar alguém. É a despersonalização das relações laborais que também me interessa. E agora, com a pandemia, muitas pessoas trabalham através de aplicações e devemos pensar como isso se reflecte nas relações de trabalho. Se, por vezes, é difícil defender um companheiro, torna-se muito mais difícil quando não o conhecemos porque cada um de nós está a trabalhar na sua casa e isso dificulta o fortalecimento dos laços entre as pessoas.

O patrão é um fabricante de balanças. Para ter êxito económico há que calibrar tudo muito bem?

Ele faz o contrário! (risos) Coloca algo colado debaixo do prato para que a balança acuse o peso que ele quer. Gosto muito da metáfora das balanças porque são objectos que fazem parte das nossas vidas, estão no supermercado, por exemplo. E pensei… alguém fabrica isso. Podia ter pensado noutro produto, a história também funcionava, mas num tempo em que falamos tanto de equilíbrio, equidade, a balança acaba por ser esse símbolo universal e, por isso, agradou-me colocar esse símbolo num lugar tão desequilibrado e onde as relações estão descompensadas. No filme vemos uma balança na entrada da fábrica que é a primeira balança fabricada há mais de 50 anos e está mal calibrada, o que incomoda muito o patrão porque eles fabricam balanças e não podem ter uma distorcida na entrada.

Javier Bardem sempre foi o patrão?

Eu comecei como argumentista e nunca podia pensar primeiro nos atores porque não ia dizer ao realizador, ou ao produtor, qual seria o ator. Portanto, escrevo a pensar no vazio, como se fosse uma personagem inexistente. Quando concluí o argumento do filme tornou-se evidente que poderia ser Javier Bardem porque já trabalhara com ele, é maravilhoso, e pensei que podia dar carisma, força, humor, também mesquinhez, a esta personagem, ele podia fazer essa composição.

E a nomeação para o Óscar de melhor filme internacional?

Não espero nada! O filme integra a short list de 15 filmes, foi escolhido após uma selecção inicial num conjunto de uma centena de filmes. Eu e o Javier Bardem estamos a trabalhar mostrando o filme em colóquios para o explicar e defendê-lo. Temos confiança porque fala de temas importantes com humor, mas há outros filmes bons que foram aplaudidos em festivais europeus. Estou consciente da dificuldade, mas não perco a esperança, com um pouco de sorte estaremos entre os cinco finalistas.

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