Laurie Anderson e a sua presença desenhada — percorrendo as memórias de Lolabelle


joao lopes
26 Dez 2015 18:57

Chegámos ao tempo da personalização… Desde o modo como somos atendidos no comércio até aos disparates que proliferam nas redes "sociais", tudo parece decorrer de uma preocupação de "personalizar" tanto o consumo como o discurso público que possamos assumir. Na prática, promove-se a ilusão de que dizer (ou escrever) "eu" é uma coisa simples, automática, no limite, não envolvendo qualquer tipo de responsabilidade.

"Coração de Cão" (título original: "Heart of a Dog") é, justamente, um caso modelar de alguém que aposta em dizer/filmar o seu "eu" a partir de uma intimidade radical — intimidade que começa na vida e na morte de Lolabelle, a cadela que justifica o título. Ao evocar Lolabelle, Laurie Anderson propõe, afinal, uma deambulação em que o cinema supera todos os maniqueísmos, a começar pelo que opõe "documentário" e "ficção".
De facto, dir-se-ia que Laurie Anderson fez apenas um documentário sobre as memórias da sua cadela. O certo é que "Coração de Cão" acaba por ter qualquer coisa de transcendente, sem nunca perder a sua dimensão íntima e intimista. Através de uma montagem tão ágil quanto inteligente de filmes de super 8, fotografias e desenhos, Laurie Anderson propõe um novelo de factos, imaginações e pensamentos em que tudo se cruza, desde a evocação dramática do 11 de Setembro até à presença das memórias (e da música) do seu marido, Lou Reed.
"Coração de Cão" começa com a narrativa de um sonho de Laurie Anderson, centrado no nascimento de Lolabelle — são imagens de desenhos animados que abrem o filme para a possibilidade de combinar todos os materiais, todas as formas de conhecimento. Em última instância, a personalização desemboca, aqui, na sua dimensão mais radical, a ponto de o espectador ser levado a sentir e pressentir que olhar o mundo à nossa volta é algo que implica a construção de um contrato (de conhecimento, justamente) com os outros.
Em termos simples, este é um dos filmes mais belos de 2015 — e se é verdade que continuamos a viver o Natal como um tempo de abertura às emoções dos outros, então não haverá objecto mais adequado ao espírito da quadra.

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