Estreias
Uma família, suas imagens e sons
Em "A Metamorfose dos Pássaros", Catarina Vasconcelos revisita as memórias da sua família: o resultado é uma viagem intimista capaz de repensar, de forma envolvente, as relações entre o que se diz e o que é mostrado.
"A Metamorfose dos Pássaros": palavras e silêncios, emoções e afectos
Trailer/Cartaz/Sinopse:
A Metamorfose dos Pássaros
Beatriz e Henrique casaram no dia em que ela fez 21 anos. Henrique, oficial de marinha, passava largas temporadas no mar. Em terra, Beatriz, que aprendeu tudo com a verticalidade das plantas, cuidou das raízes dos 6 filhos. O filho mais velho, Jacinto, é meu pai e sonhava poder um dia ser pássaro. Um dia, subitamente, Beatriz morre. A minha mãe não morreu subitamente, mas morreu quando eu tinha ...
Eis duas perguntas clássicas que o filme "A Metamorfose dos Pássaros", de Catarina Vasconcelos, nos faz reencontrar e, de alguma maneira, repensar:
1 — como definir a fronteira entre documentário e ficção?
2 — quais as possibilidades de relação (conjugação ou dissonância) entre as imagens e os sons?
Numa primeira resposta, deparamos com o gosto de uma liberdade formal, também ela clássica, mas nem sempre devidamente aproveitada. Aqui, pelo contrário, os resultados são sugestivos e envolventes: este é um filme que parte de um pressuposto documental — construir uma memória da família da própria realizadora — para ir acolhendo as vibrações dramáticas de uma pura ficção.
Depois, somos levados a reconhecer um outro princípio de liberdade formal que, em particular, alguns cineastas das novas vagas dos anos 60 (Godard, Resnais...) aplicaram de modo tão peculiar. A saber: a complementaridade de imagens e sons não resulta obrigatoriamente de qualquer "simultaneidade" informativa. No limite, tal simultaneidade pode resultar da uma calculada estranheza mútua — daí nascem, aliás, os momentos mais genuinamente cinematográficos de "A Metamorfose dos Pássaros", sustentado, em particular, pelo efeito coral das vozes que o habitam.
Como outras experiências da produção portuguesa recente (sobretudo no domínio das curtas-metragens), "A Metamorfose dos Pássaros" é um objecto que corre o risco de ser parasitado por um maneirismo que, em última instância, mesmo involuntariamente, ameaça desvalorizar personagens e situações. Felizmente, esse risco vai sendo superado por um risco maior: tratar a pura intimidade como cenário de um teorema de palavras e silêncios, emoções e afectos.
Crítica de João Lopes
publicado 22:36 - 09 outubro '21