Quando Sartre veio ver a Revolução dos Cravos

por RTP
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De 23 de Março a 16 de Abril de 1975, Jean-Paul Sartre esteve em Portugal, com um pequeno grupo em que se integravam Simone de Beauvoir, Pierre Victor e Serge July. Entre o golpe spinolista de Março e as eleições constituintes de Abril, Sartre, quase cego, perguntava-se se conseguiria "ver" a revolução. Vinha ver e ouvir, mais do que perorar. Viu alguma coisa, com a sua conhecida perspicácia, e decepcionou-se por não ouvir mais. As vozes da revolução eram confusas e pouco articuladas.

Não era a primeira vez que Sartre e Beauvoir deixavam a "zona de conforto" da rive gauche do Sena e corriam ao encontro de uma revolução. Bem conhecida, era a sua amizade com o "Che" Guevara (na foto) ou com Fidel, depois tempestuosamente terminada quando o duo francês tomou posição contra a prisão de Heberto Padilla. Mas a visita de Sartre e Beauvoir ao que Kissinger chegou a considerar a Cuba da Europa foi o prolongamento lógico do seu interesse anterior pela Cuba do Caribe.

A RTP acompanhou na altura vários momentos decisivos da visita de Sartre a Portugal e guardou sobre ela imagens preciosas. Mais tarde, a RTP Memória coligiu as principais e apresentou-as, em dois programas datados de 2006, com comentários de António Pedro Pita, professor da Universidade de Coimbra e especialista do pensamento sartriano.Sartre defende os maoistas - cautelosamenteDo primeiro desses programas, consta o resumo de uma conferência de imprensa em que Sartre começa por deixar a ressalva de não falar português e de apenas entender o essencial. Mesmo assim, responde à pergunta sobre as suas impressões relativamente à imprensa portuguesa dizendo: "Não a acho muito boa". Compara-a com a grande imprensa francesa - que, em contraste com a portuguesa, classifica como burguesa -, diz que a imprensa portuguesa parece ter mais vontade de dizer a verdade, mas ainda assim é inferior à francesa - já de si bastante má.

O motivo dessa inferioridade é o de a imprensa portuguesa não publicar estudos detalhados sobre certas realidades sociais ou certos factos históricos. Sartre terá procurado na imprensa portuguesa e, pelos vistos, sentido a falta de explicações sobre "o que é uma empresa em autogestão, o que é uma casa ocupada, o que é um facto particular como o 11 de Março". Esse tipo de realidades e de factos é, na imprensa francesa, explica Sartre, objecto de algum tipo de explicação - o que falta na imprensa portuguesa.

A uma outra pergunta sobre limitações à liberdade que poderão ser admissíveis numa revolução, Sartre replica no condicional: uma sociedade livre pode estabelecer limitações à sua própria liberdade, mas não devem aceitar que elas sejam estabelecidas por outrem. E aproxima-se de uma concretização, considerando inaceitável que os militares imponham uma disciplina aos civis ou que um grupo particular imponha as suas regras ao conjunto da sociedade.

Outra intervenção ainda, vinda de um militante do MRPP, pede que Sartre se pronuncie sobre a detenção de militantes desse partido e aproveita para lhe pedir um juízo mais global sobre o carácter do PREC, sugerindo que por se estar a prender revolucionários, não se trate de uma revolução e sim de uma contra-revolução. A pergunta visava evidentemente obter de Sartre uma resposta conforme ao que fora a sua solidariedade com o jornal maoista Cause du Peuple, ao qual o escritor emprestara o seu nome como director e mesmo a sua imagem como ardina (na foto), quando este foi proibido.

Ao responder, Sartre classifica a detenção de militantes do MRPP como "um erro grosseiro", mas não embarca nas deduções sobre o alegado carácter contra-revolucionário do PREC.Interesse de Sartre pela autogestão em PortugalNa sua deslocação ao Porto, resumida no segundo programa da RTP Memória, Sartre presta uma especial atenção à experiência autogestionária, embora ressalve que a fisionomia final do socialismo não é autogestionária. Sartre visita a empresa têxtil "Sousa e Abreu", com uma trintena de trabalhadores, abandonados pelo patrão seis meses antes. O patrão levou tudo o que pôde, mas teve de deixar as máquinas. Com elas, os trabalhadores decidiram prosseguir a actividade.

Pela descrição de Sartre, os trabalhadores parecem ter constituído uma CT (embora o visitante não utilize a designação), com três a seis pessoas, que tomam as decisões correntes e que submetem as decisões de fundo ao plenário. Sartre fala ainda do aumento que se decidiu para os salários - muito baixos até aí, mais baixos ainda do que seria desejável. E fala da excepção aberta para os vencimentos mais altos, de alguns quadros e operários especializados, que mantiveram os níveis anteriores e não foram aumentados. Nos plenários e na redução do leque salarial, Sartre julga detectar o que designa como "camaradagem igualitária".

O filósofo desenvolve algumas considerações sobre o lugar da autogestão no processo de luta pelo socialismo, numa sociedade em que - diz-nos, no início de Abril de 1975, após uma primeira vaga de nacionalizações - continua a dominar a propriedade privada capitalista. A autogestão é para Sarte uma contribuição específica do proletariado industrial para esse processo em que existem ainda outras contribuições (do MFA, dos partidos). Mas não restam dúvidas de que esta o interessa mais do que as de carácter predominantemente institucional, porque constitui um acervo de experiências novas, para pessoas que a partir daí desenvolvem ideias novas e podem organizar-se entre elas sobre essa nova base.Sartre decepcionado com os estudantesNum outro debate, este com intelectuais, Sartre e Simone de Beauvoir debruçam-se sobre a dualidade do trabalho dos intelectuais. Por um lado, há que divulgar, há que saber dirigir-se a uma população ainda com grande percentagem de analfabetos; por outro, não se pode renunciar a um trabalho mais teórico, realizado em âmbito universitário, ou a uma criação mais original, com expressão da subjectividade dos autores. O tema volta a ser abordado em círculo mais amplo, na Universidade do Porto, com presenças reconhecíveis entre a assistência de Óscar Lopes, Urbano Tavares Rodrigues, José Augusto Seabra.

Perante centenas de estudantes da Universidade do Porto, é Sartre quem coloca as perguntas: que relações têm os estudantes com a revolução? Até onde querem ir? Querem caminhar no sentido de uma sociedade socialista, ou querem parar a meio caminho e ficar-se pela democracia burguesa?

Sartre dá por suposto que a revolução deve distinguir-se por uma diversidade efervescente, mas ninguém lhe responde. Impacienta-se: "Por que não respondem?". Fustiga o público: "A diversidade é muda. Faz barulho mas não diz o que pensa". Continua a fustigar o público: o silêncio daquela plateia, supostamente mais culta, só pode explicar-se por estarem, os estudantes, em atraso relativamente ao proletariado, ao campesinato e mesmo ao MFA. E aconselha-os a fazerem um esforço para se integrarem na corrente revolucionária.

Sobre esta viagem, dirá mais tarde Simone de Beauvoir: "Para Sartre, tratava-se principalmente de uma viagem de informação. Acompanhado por Pierre Victor e às vezes por Serge July, teve numerosas conversas com membros do M.F.A. Almoçou no 'quartel vermelho' [RALIS], de que pouco tempo antes uns oficiais putschistas tinham tentado apoderar-se. Fez uma conferência perante estudantes que o desiludiram pela falta de reacção às perguntas que fez. Ficou com a impressão de que se sujeitavam à revolução mais do que a faziam. Em contrapartida, teve muito bons contactos com os operários de uma fábrica em auto-gestão, próximo do Porto".
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