Exploração infantil no Congo alimenta gigantes mundiais da tecnologia

por Sandra Salvado - RTP
Há crianças que trabalham mais de 12 horas por dia nas minas do Congo, para ganhar entre um e dois dólares por dia. Amnistia Internacional/ Afrewatch

Grandes empresas de tecnologia como a Apple, a Samsung ou a Sony, entre outras marcas mundiais, não estão a tomar as medidas necessárias para vedar os seus produtos ao minério de cobalto obtido na República Democrática do Congo com recurso trabalho infantil. É o que conclui um relatório difundido pela Amnistia Internacional.

“Cheguei a passar 24 horas seguidas nos túneis. Entrava de manhã e só saía na manhã seguinte. Tinha de fazer as necessidades lá em baixo. A minha mãe adotiva queria mandar-me para a escola, mas o meu pai adotivo era contra. Ele explorou-me obrigando-me a trabalhar na mina”, relatou Paul, um rapaz órfão de 14 anos que começou a trabalhar nas minas aos 12 anos de idade.
A República Democrática do Congo é a principal fornecedora mundial de minério de cobalto.
Este é apenas um dos testemunhos emocionados que foram transmitidos aos investigadores responsáveis pelo relatório com as chancelas da Amnistia Internacional e da Afrewatch.

As principais marcas de tecnologia internacionais estão a deixar de fazer verificações básicas para garantir que o cobalto extraído por crianças, na República Democrática do Congo (RDC), não seja usado nos seus produtos, nomeadamente baterias de telemóveis, de computadores portáteis e de carros elétricos, segundo as organizações de defesa dos Direitos Humanos.

Fonte: Amnistia Internacional e Afrewatch

“As montras vistosas nas lojas e o marketing das tecnologias de ponta são um contraste bastante gritante com as imagens de crianças a carregarem sacos de pedras e de mineiros enfiados em túneis apertados permanentemente em risco de sofrerem danos nos pulmões”, diz Mark Dummett, um dos investigadores da Amnistia Internacional. O documento acrescenta: “Milhões de pessoas no mundo inteiro gozam dos benefícios das novas tecnologias mas raramente se questionam como é que são feitas. É mais do que chegada a altura para as grandes marcas assumirem responsabilidades sobre a extração das matérias-primas que fazem parte dos seus lucrativos produtos”.

Este novo relatório documenta a forma como os comerciantes de minérios compram cobalto, em áreas onde o trabalho infantil é frequente, e o vendem à Congo Dongfang Mining (CDM), uma empresa congolesa subsidiária da gigante mineira chinesa Zhejiang Huayou Cobalt Ltd (Huayou Cobalt).



A investigação contém documentos de investidores no sector que demonstram como a Huayou Cobalt e a subsidiária CDM processam o cobalto antes de o venderem a três fabricantes de componentes de baterias na China e na Coreia do Sul. Estes, por sua vez, dizem vender os seus produtos a grandes empresas de tecnologia e do sector automóvel como a Apple, a Microsoft, a Samsung, a Sony, a Daimler e a Volkswagen.
16 multinacionais na lista
Os relatores contactaram 16 multinacionais, listadas como clientes dos fabricantes de baterias que são fornecidos com o minério processado pela Huayou Cobalt.

Uma das empresas admitiu esta ligação; quatro disseram não ter dados para atestar se estão a comprar minério de cobalto na República Democrática do Congo ou processado pela Huayou Cobalt; seis afirmaram estar a investigar as alegações.

Há outras cinco empresas que negaram trabalhar com cobalto fornecido pela Huayou Cobalt, apesar de serem identificadas como clientes nos documentos empresariais dos fabricantes de baterias, incluídos nesta cadeia de produção. E duas das multinacionais visadas na investigação negaram mesmo comprarem seja o que for que contenha cobalto proveniente da República Democrática do Congo.



Nenhuma das empresas contactadas prestou detalhes suficientes para ser feita uma análise independente à proveniência do cobalto usado nos seus produtos.

“É um enorme paradoxo da era digital que algumas das mais ricas e mais inovadoras empresas do mundo possam comercializar aparelhos incrivelmente sofisticados sem lhes ser exigido que demonstrem de onde vêm as matérias-primas com que são fabricados os seus componentes”, salienta o diretor executivo da organização não-governamental AfreWatch-Africa Resources Watch, Emmanuel Umpula.

“Os abusos nas minas continuam sem que ninguém os veja e sem que ninguém pense neles, porque no atual mercado mundial os consumidores não fazem ideia nenhuma sobre as condições de trabalho nas minas, nas fábricas e nas linhas de montagem. A nossa investigação descobriu que os comerciantes estão a comprar cobalto sem fazerem quaisquer perguntas sobre como e onde foi extraído”, prossegue.

A República Democrática do Congo produz pelo menos 50 por cento do cobalto mundial e um dos maiores processadores do minério no país é a CDM, subsidiária da gigante chinesa Huayou Cobalt, a qual obtém naque país mais de 40 por cento do cobalto que processa.



De acordo com esta investigação, os mineiros que trabalham nas regiões onde a CDM compra cobalto vivem com o risco de danos de saúde a longo prazo e um elevadíssimo risco de acidentes mortais. Pelo menos 80 mineiros morreram debaixo de terra no sul da RDC, apenas entre setembro de 2014 e dezembro de 2015. De acordo com a Unicef, quase 40 mil crianças trabalhavam, em 2014, nas minas no Sul da República Democrática do Congo, muitas delas na extração de cobalto.

O número real de acidentes é desconhecido, uma vez que muitos acidentes não são sequer registados e os corpos ficam soterrados nos escombros das minas.

Os investigadores da Amnistia Internacional descobriram também que a larga maioria dos mineiros trabalham muitas horas todos os dias na lavagem de cobalto, sem o mais básico equipamento de proteção, como luvas, roupas de trabalho ou máscaras que os salvaguardem de doenças dos pulmões ou da pele.

Várias crianças testemunharam à equipa da Amnistia Internacional que chegam a trabalhar 12 horas seguidas nas minas, transportando cargas pesadas, para ganharem entre um e dois dólares por dia.

“Empresas cujos lucros globais ascendem a 125 mil milhões de dólares não podem com credibilidade argumentar que não têm forma de confirmar de onde provêm os minerais que constituem partes essenciais dos seus produtos”, sustenta Mark Dummett, da Amnistia Internacional.
 


“A extração das matérias-primas que fazem trabalhar um carro elétrico ou um telemóvel deve constituir uma fonte de prosperidade para os mineiros da República Democrática do Congo. Mas a realidade é que é uma vida esgotante, com condições de miséria e em troca de quase dinheiro nenhum. As grandes marcas mundiais têm o poder de mudar isto”, salienta Dummett.

Este relatório mostra que as empresas ao longo da cadeia de fornecimento de cobalto não estão a avaliar adequadamente os riscos de Direitos Humanos que existem no sector.
Falta de regulação
Atualmente não há regulação do mercado global de cobalto. O minério não é referido na lista dos “minérios [de zonas] de conflito” que consta das regras do sector nos Estados Unidos, a qual menciona o ouro, tântalo, estanho e volfrâmio minerados na República Democrática do Congo.

“Muitas destas multinacionais sustentam ter uma política de tolerância zero ao trabalho infantil. Mas isto não vale sequer o papel em que está escrito quando na verdade as empresas não investigam os seus fornecedores. Aquilo que dizem não é credível”, critica Mark Dummett.

“Os governos têm de pôr fim a esta falta de transparência, que permite às empresas lucrarem com a miséria”, remata o mesmo responsável.
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