O mundo em casa

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP
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A pandemia domina a política internacional. Com a provável excepção da Coreia do Norte, não haverá um país que não tenha a Covid-19 na primeira página dos seus jornais. Com a periodicidade possível e sem sair de casa, propomo-nos passar uma vista de olhos pelo que se vai passando por outras paragens.

Fracasso
A pandemia da Covid-19 também tem revelado o que de pior há nos Estados. Durante a semana passada, soubemos que vários governos nacionais estavam a reter e a apropriar-se de material médico urgente em trânsito para outros países. Turquia, Estados Unidos e França, entre outros, terão recorrido a expedientes que puseram a nu uma total falta de solidariedade. Esta lógica de “salve-se quem puder”, típica da pirataria, serve de fraco exemplo a uma cidadania que sofre na pele a doença e as restrições que esta impõe.
África

Uma das grandes incógnitas do actual quadro mundial é a situação da esmagadora maioria dos países africanos. Longe do radar mediático, sem capacidade para testar, sem serviços de saúde adequados e sem margem financeira para comprar material hospitalar num mercado muito inflaccionado, África corre o risco de ser deixada à sua sorte por um Ocidente centrado nas suas próprias feridas. Será interessante ver se a China vai aproveitar a oportunidade num continente onde tem vindo a ganhar grande capacidade de influência nos últimos anos.
Reino Unido

No Reino Unido, Keir Starmer foi eleito líder do Partido Trabalhista, através de uma eleição que voltou a envolver simpatizantes e militantes do partido e de organizações da sua órbita. Starmer é uma solução de compromisso entre a ala mais à esquerda do partido, dominante durante a liderança de Jeremy Corbyn, e o que resta do new labour, protagonizado por Tony Blair.

O novo líder da oposição chega num momento particularmente complexo para o país e para os trabalhistas. O executivo monopoliza a resposta à emergência e o parlamento, palco principal do debate político no Reino Unido, está temporariamente encerrado. O antigo procurador-geral herda um partido radicalizado e tutelado pela Momentum, corrente ideológica organizada do corbynismo, que não estará na disposição de perder influência.

Por outro lado, a gestão da crise económica aponta no sentido de um aumento claro da despesa pública, aspecto que diferenciou nas últimas décadas os programas conservador e trabalhista. O conservadorismo britânico, desde a chegada de Boris Johnson ao poder e para cumprir a promessa do Brexit, entrou em ruptura tácita com o ultraliberalismo de Margaret Thatcher. O estímulo para incrementar o peso do Estado na economia é agora ainda maior (sobretudo sem os compromissos exigidos por Bruxelas) o vai acabar por retirar especificidade às propostas trabalhistas.
Opinião pública

O apoio da população ao governo não é exclusivo do Reino Unido, onde as últimas cinco sondagens publicadas dão um apoio superior a 50% aos conservadores. O jornal espanhol ABC publicava ontem uma comparação entre vários estudos de opinião que revelam o grau de confiança em relação aos líderes políticos europeus na gestão da crise pandémica. A generalidade dos chefes de governo é bem avaliada, confirmando a ideia de que a opinião pública confia (talvez por não ter muitas opções) nas lideranças políticas.

A exigência dos cidadãos vai fazer-se sentir de forma mais vincada quando passarmos da pandemia à economia e as consequências no emprego e na disponibilidade financeira das famílias se fizerem sentir. Esse será o momento de maior risco, sobretudo para os sistemas políticos há mais tempo sujeitos à pressão de partidos políticos extremistas e antissistema.
Sugestão

Ben Rhodes, conselheiro de segurança nacional adjunto durante a administração de Barack Obama, defende no artigo “The 9/11 Era is Over”, no site da revista norte-americana The Atlantic, que a pandemia de coronavírus é um momento de ruptura em relação a duas décadas marcadas pelas consequência dos ataques terroristas de 2001.

Nota: o autor escreve respeitando a ortografia pré-acordo ortográfico.
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