O mundo em casa

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP
Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP DR

A pandemia da Covid-19 veio expor de forma muito clara as fragilidades das lideranças populistas. Habituados a um discurso assente no lugar-comum, os governos dos Estados Unidos e do Brasil precisaram repentinamente de incorporar aspectos complexos e científicos nos seus processos de tomada de decisão. Ficou, assim, a nu de forma muito crua a vacuidade de quem mobiliza com base em notícias falsas e em preconceitos.

O caso brasileiro é paradigmático, pela forma como o presidente da República insiste em afirmar-se ostensivamente por via da negação das normas que a generalidade dos governos e dos responsáveis políticos do seu próprio país consideram as mais adequadas para combater a propagação de uma doença que já provocou mais de 100.000 mortos em todo o mundo. Mas... será isto assim tão estranho?

Jair Bolsonaro chegou ao poder a reboque do desgaste de um Partido dos Trabalhadores que esteve dez anos no poder. O PT, o partido cujo programa fora não ser igual aos outros, demonstrou ser, afinal, tão corrupto como os outros. Com a desvantagem, face à concorrência, de ter hostilizado as elites políticas e económicas que levaram ao colo o seu fundador, Lula da Silva, à Presidência da República.

A queda do PT não tem na sua origem as negociatas toleradas, patrocinadas ou levadas a cabo por Lula, mas sim a recusa de Dilma Rousseff em alinhar com elas. A presidente que sucedeu a Lula permitiu que a política e a justiça actuassem e escancarou, e bem, as portas à acção judicial. A partir daí, a operação “Lava Jato” ganhou vida própria e deixou de ser controlável por um sistema político que sempre tutelara a justiça ao ponto de, e mal, condicionar intensionalmente a política. O Brasil foi abalado nas suas estruturas e uma enxurrada levou pela frente responsáveis de todos os partidos e das maiores empresas do país.

Quando a terra parou de tremer, a corrupção assumira o lugar de crime supremo no ordenamento jurídico mental da opinião pública brasileira. Entre boa parte da população, passou a haver mais tolerância para com um polícia que assassina a sangue frio uma criança que alegadamente rouba do que para com um político corrupto. Neste novo quadro de simplificação política extrema, os candidatos passaram a ser avaliados em função de uma só variável: o não envolvimento em esquemas de corrupção.

As campanhas eleitorais deixaram de ser um espaço de avaliação de programas e características do candidato para passar a resumir-se ao praguejar contra o adversário e a juras de honestidade e de punição violenta dos crimes. As redes sociais assumiram o lugar de palco privilegiado através do qual se espalham mensagens sem contraditório, em detrimento do crivo dos órgãos de comunicação social. Esta lógica também assenta sobre a ideia estrutural de que economia deve fluir livremente sem intervenção do Estado, o que é muito cómodo em termos de desresponsabilização do poder público.

Uma liderança deste género até pode subsistir em quadros de crescimento económico e de alguma estabilidade. O que dizer, no entanto, quando um governo se vê confrontado com o maior desafio global em termos de saúde pública do pós-Segunda Guerra Mundial? No caso de Bolsonaro, a falta de preparação e a persistência em ignorar conselhos técnicos e políticos de todos os que não façam parte do núcleo familiar chegou ao ponto de o pôr em xeque.

Na semana passada, pela primeira vez, o sector militar terá desautorizado o presidente e impedido a demissão do ministro da Saúde, Luiz Mandetta. Não quer isto dizer que a destituição esteja para breve ou sequer que venha a existir, mas o golpe é forte para um governante que não tem partido político e que alienou o apoio de quase todas as formações que promoveram por activa e por passiva a sua eleição.

Bolsonaro deixou definitivamente de ser um problema exclusivo de uma oposição fragmentada e sem rumo para passar a ser um problema geral da sociedade brasileira.
Sugestão
A este propósito, vale a pena ver a entrevista que Fernando Henrique Cardoso deu ao correspondente da RTP no Brasil, Pedro Sá Guerra. No registo ficcional, as duas temporadas da série “O Mecanismo”, disponível na Netflix, com todas as suas limitações, permitem ter uma ideia genérica sobre as circunstâncias que ditaram a chegada de Bolsonaro ao poder.

Nota: o autor escreve respeitando a ortografia pré-acordo ortográfico.
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