O mundo em casa

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP
Macron terá que tomar, por estes dias, a decisão mais transcendente do seu mandato: ou opta pela via Hollande e assume que o seu poder não vai além da capacidade de influenciar Berlim; ou assume, sem reservas, uma aliança com Madrid e com Roma que evite a repetição de 2010 DR

A União Europeia é produto de um longo processo que teve início no pós-Segunda Guerra Mundial e que tinha como grandes objectivos manter a unidade da Europa Ocidental face à ameaça soviética e conferir legitimidade à Alemanha na forma de República Federal.

Durante os quase 60 anos que vão da assinatura do Tratado de Paris (1951) à eclosão da crise das dívidas soberanas (2010), o projecto europeu assentou num eixo franco-alemão com papeis muito bem definidos: a Alemanha exercia a função de potência económica, com os franceses a aceitaram a sua preponderância, por exemplo, no estabelecimento das regras da moeda única; e para França ficava reservado o ascendente em matéria de política e de defesa, com os governos alemães a recusarem, mesmo depois do fim da Guerra Fria, a via do rearmamento.

No entanto, o Estado francês não se adaptou ao pós-Guerra Fria e à tendência de maior liberalização económica que passou a dominar o panorama ocidental nos anos 80. A esquerda e a própria direita gaullista, ocupada com a contenção da extrema-direita da Frente Nacional, resistiram, pelo menos até à chegada de Nicolas Sarkozy ao poder (2007), às reformas estruturais exigidas pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pela Alemanha.

Os presidentes franceses com ímpetos mais liberalizantes, como Sarkozy ou Emmanuel Macron, mesmo contando com maiorias parlamentares sólidas, acabaram por se ver obrigados a recuar pela pressão social e pela resistência nas estruturas públicas internas. França habitou-se a viver pressionada entre as exigências europeias e a resistência interna.

O início da crise económica de 2008 gerou algumas ilusões em torno de um possível fortalecimento do papel do Estado na economia. Em Dezembro desse ano, em Conselho Europeu, o governo alemão cedeu e reconheceu que o investimento público poderia ser uma ferramenta para responder à contracção do papel dos privados.

Porém, a conjugação do aumento da despesa por esta via com a necessidade de acudir a bancos privados e públicos à beira da falência levou ao descontrolo orçamental em alguns países (Irlanda, Grécia, Portugal, Chipre...). Estes, sem moeda própria e numa união monetária com normas rígidas, acabaram por ter que recorrer a empréstimos das instituições europeias e do Fundo Monetário Internacional sujeitos a programas de reformas (condicionalismo).

Este é o momento em que a União Europeia perde definitivamente a sua inocência. O pilar político esfuma-se e, com ele, o instrumento de poder de França. A Europa, entre 2010 e 2015, tem como única preocupação a sobrevivência da moeda única e a consolidação de mecanismos permanentes que respondam a potenciais crises em Estados periféricos. Este é o início do domínio alemão explícito, com o então presidente francês, o socialista François Hollande, a limitar-se ao desempenho fracassado do papel de “grilo falante” de Berlim. Se os problemas monetários monopolizam a agenda europeia, a maior potência económica e financeira vê o seu campo de actuação expandir-se com poucos limites.

Em 2017, Macron chega à Presidência da República com um programa de reformas domésticas e de afirmação numa Europa que, embora se encontrasse economicamente mais estável, estava fragilizada pela iminente saída do Reino Unido. Em França, enfrentou as resistências habituais, recuando, paulatinamente, nas propostas mais radicais. Na Europa, procurou aproveitar a oportunidade representada pelo Brexit, que conferiu a França o estatuto de única potência nuclear e com assento no Conselho de Segurança da União Europeia.

A Covid-19 veio frustrar as intenções de Macron. Todas as previsões económicas apontam agora para uma crise mais profunda do que a anterior. Estamos a viver o momento equivalente àquele em que o Conselho Europeu autorizou os Estados a aumentar a despesa, em Dezembro de 2008. A forma como pode amadurecer uma crise das dívidas soberanas (fase seguinte) vai definir-se nas próximas semanas.

Macron terá que tomar, por estes dias, a decisão mais transcendente do seu mandato: ou opta pela via Hollande e assume que o seu poder não vai além da capacidade de influenciar Berlim; ou assume, sem reservas, uma aliança com Madrid e com Roma que evite a repetição de 2010. Porém, neste caso, França teria que abandonar, por agora, uma parceria com a Alemanha que lhe dá pouco poder, mas um lugar simbólico, assumindo-se como um país do Sul, o que lhe poderia dar mais poder, mas menos prestígio formal. Os franceses não estão habituados a isso.
Sugestão
O editorial de hoje de El País chama a atenção para os problemas estruturais do México que se tornaram mais evidentes com a epidemia. No continente americano, Donald Trump e Jair Bolsonaro são as faces mais visíveis da forma leviana como a Covid-19 foi enfrentada, mas Lopéz Obrador, o presidente mexicano, também desprezou a ameaça.
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