A editora Libertária, associação cultural política e revolucionária, nasce este mês

por Lusa

Uma editora independente e assumidamente politizada, que quer editar "livros bons que façam pensar" e ser autossuficiente nasce este mês, trazendo consigo um projeto mais amplo de ser uma associação cultural, com escritório no campo, em regime de comunidade.

Chama-se Libertária e é muito mais do que uma editora: é um projeto político e revolucionário, é uma revista, é uma associação cultural, assenta em trabalho voluntário, quer fixar-se no campo a trabalhar em regime comunitário, estabelecer parecerias com pelo menos dez livrarias independentes em todo o país como pontos fixos de venda e pregar a autossuficiência e a autogestão como filosofia de vida.

Ao todo são, neste momento nove pessoas que estão por detrás do projeto, mas os principais impulsionadores foram Flávio Gonçalves, editor, e Jorge Matias, paginador profissional, ex-colaborador do jornal O Crime e diretor da extinta revista Your VIP Partner.

Em entrevista à Lusa, Flávio Gonçalves, explicou por que a Libertária se apresenta como "revista e editora socialista democrática de inspiração libertária" e também como "associação cultural".

"No primeiro caso, porque nos assumimos à partida como um projeto politizado, não somos uma editora neutra que irá escolher os autores com base nas listas de `best sellers` do New York Times. Queremos editar livros bons que façam pensar, alguns de nós militam em partidos políticos e, como revista, temos autores e leitores ativistas ou simpatizantes do PS, PCP, Livre e BE", sendo João Pedro Cordeiro, que trabalha na área logística, "o único apolítico".

No segundo caso, "o objetivo era sermos uma editora cooperativa, (...) mas ao verificarmos que o grau de engajamento com o projeto varia de colaborador para colaborador (e aqui não nos referimos a trabalhadores, somos todos colaboradores voluntários de um mesmo projeto onde todos têm a palavra), como cooperativa teríamos obrigatoriamente de partilhar todo o lucro anual de modo equitativo mesmo com quem quer ser mero sócio ou investidor anónimo, optamos então pela figura da associação cultural".

"Eu e o Matias já trabalhamos com outras editoras comerciais, não temos também boas recordações de toda a carga burocrática e despesas fixas que comportaria sermos uma empresa, a Libertária de momento é algo ao qual dedicamos uma ou duas horas por dia depois do expediente e algumas das nossas folgas. Como associação cultural temos também mão livre para organizar conferências, concertos, faz muito mais sentido surgir assim e, com tempo, avançar para a plena profissionalização como cooperativa editorial mudando-nos para Santarém, onde estamos atualmente a construir o nosso armazém e escritório".

Para tal, compraram um terreno urbanizável numa área remota e estão, eles mesmos, a construir as infraestruturas de raíz, inspirados em exemplos como o `Project Kamp`, de Dave Hakkens em Santa Comba Dão, a `ecoaldeia` de Janas ou a Aldeia do Vale.

A filosofia que subjaz à criação deste projeto vem da juventude de Flávio Gonçalves, que cresceu a ler fanzines como a "Crack" e a "Cadáver Esquisito", na altura em que se podia comprar revistas e colocar anúncios em jornais como o Blitz, enviando selos de correio num envelope.

"A regra do punk e do hardcore era o DIY (Do It Yourself, Faça Você Mesmo) e foi essa filosofia que quisemos trazer para a editora. Tanto eu como o Matias conseguimos traduzir, rever, paginar, criar uma capa e formatar um livro ou uma revista desde o esboço até ao ficheiro final que vai para a gráfica", contou.

Por isso, querem pregar a autossuficiência e a autogestão não só editando obras que incentivem e ensinem outros a adotar esta filosofia de vida, mas também pela prática, dependendo o mínimo possível de elementos externos.

Na verdade, a Libertária, enquanto marca, surgiu em 2017, às mãos de simpatizantes e militantes do Partido Socialista, com a intenção de ser uma revista oficiosa que desse a conhecer o socialismo democrático, "ideologia fundacional do PS nos anos 1970, incutindo-lhe uma inspiração libertária que estava também muito presente aquando da fundação do PS e que foi completamente esquecida, ignorada ou metida propositadamente na gaveta, juntamente com o socialismo democrático fundacional".

"Com a Geringonça, na qual nos revemos plenamente, abrimos a porta a colaboradores de todas as esquerdas e a revista, que era suposto ser vendida apenas em conferências e ações de formação nas secções que nos aceitassem receber, começou a ser vendida ao público em geral", acrescentou.

"Para dar um exemplo prático, filiei-me no PS em 2014 e, até 2017, conheci apenas três outros militantes que sabiam quem eram Eduard Bernstein e Karl Kautsky (os intelectuais que criaram a cisma revisionista na Primeira Internacional, dando origem ao socialismo democrático da atual Internacional Socialista e Partido Socialista Europeu".

Verificando que outros militantes sentiam "o mesmo incómodo" por essa ausência de ideologia, criaram então a Libertária e, quatro números depois, foram reforçando a inclinação libertária.

Ao organizar um `crowdfunding` para editar o 4.º número da revista, compreenderam que podiam ir mais longe, e começaram a preparar-se para se transformar em editora.

Juntando todos os fundos recolhidos, os donativos diretos e subsídios de férias e Natal, conseguiram contratar uma empresa para renovar de raiz o domínio libertaria.pt, e criar o radicaislivres.pt como loja `online`.

Através desse site, pretendem vender não só os seus próprios títulos, mas também os de algumas editoras que querem apoiar, como é o caso da Barco Bêbado, da Antígona e da Tigre de Papel, bem como publicações nacionais e estrangeiros - Utopia Platafórmica, A Batalha, Manifesto -- e `pins`, bandeiras, `t-shirts` e discos de punk e hardcore.

Fora isto, vão estar na Wook/Bertrand, com quem já trabalharam noutros projetos editoriais e que, admite, nunca os deixaram ficar mal a nível de tratamento e pontualidade nos pagamentos.

Quanto a projetos futuros, querem "soltar pelo menos uma revista ou livro por mês, em 2022", que é o que o fundo de maneio lhes permite, mas sublinham que a prioridade é os que ficarem prontos primeiro, já que, sendo este um projeto assente no voluntariado, os prazos são diluídos no que toca aos tradutores e autores, que enviam os livros quando acharem que estão prontos.

Na gráfica já está "Ainda Não Sabiam Que Eram Fascistas", de João Bernardo, académico adepto do comunismo, a residir atualmente no Brasil, um volume que colige "uma incómoda coleção de ensaios da sua autoria acerca dos primórdios do fascismo".

Já formatado e prestes a seguir para a gráfica está uma nova tradução de "A Sociedade Industrial e o Seu Futuro", de Theodore John Kaczynski, subintitulado "O Manifesto do Unabomber", cuja primeira edição foi traduzida por Júlio Henriques e editada pela Fenda em 1997, estando há muito tempo fora do mercado.

A nível de revistas segue para a gráfica ainda este mês o primeiro volume da "Prontidão & Sobrevivência".

"Até ao final do ano, temos `A Anarquia`, de Élisée Réclus, `Socialismo Evolutivo`, de Eduard Bernstein, `Catecismos Revolucionários`, de Mikhail Bakunine e Sergey Nechayev, e ainda `No Centro da Terra`, de Edgar Rice Burroughs", avançou o responsável.

Em curso está a elaboração de um livro sobre socialismo municipal, por Gabriel Feitor, enquanto Flávio Gonçalves anda a entrevistar bandas punk e hardcore para uma antologia.

Entre as novidades, conta-se ainda a publicação de "algum conteúdo exclusivo, como as entrevistas históricas da `Mother Earth News`, que cedeu os direitos exclusivamente para edição digital gratuita no nosso portal", adiantaram à Lusa.

"Fugindo um pouco à norma das editoras de inspiração libertária", optaram por arrumar os livros em coleções: História Insurrecta - para obras biográficas e de historiografia; Ecologia Libertária - para obras de teor ecologista, primitivista e eco-anarquista; Biblioteca Socialista - para obras clássicas dos autores que `inventaram` o socialismo; Filhos da Polpa - para clássicos da ficção especulativa; e Sobrevivencialismo - onde irão publicar os anuários `Prontidão & Sobrevivência` e obras que promovam a autossuficiência, a permacultura, técnicas de sobrevivência e o regresso à terra".

A Libertária quer cativar pelo menos dez livrarias independentes para se tornarem pontos de venda fixos, contando para já com a parceria da Distopia, da Snob e da Tigre de Papel.

O editor confessa que gostaria de estar também na Letra Livre, na Ler Devagar e na Gato Vadio, sublinhando querer concentrar-se em Lisboa e Porto. O ideal seria, a longo prazo, estarem numa livraria por capital de distrito a longo prazo.

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