A atitude de compaixão da população portuguesa, muitas vezes empobrecida, que acolheu os refugiados da II Guerra Mundial entre 1940-46, surpreendeu Carolina Henriques Pereira, vencedora do Prémio Mário Soares - Fundação EDP 2024.
Na tese de doutoramento em História da investigadora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, "Escapando à Guerra e ao Holocausto através de Portugal: refugiados nas zonas de `residência fixa` da Região Centro (1940-1946)" - também Prémio Victor de Sá de História Contemporânea 2024 -, a investigadora analisa a passagem de milhares de refugiados por localidades termais e balneares do Centro que, devido à guerra, sofriam com a quebra do turismo.
Após dedicar a tese de mestrado à presença de judeus e não judeus nas Caldas da Rainha, no distrito de Leiria - dissertação publicada em livro em 2017 -, a investigadora alargou a área geográfica para o doutoramento, debruçando-se sobre "as chamadas `residências fixas` da zona centro": Cúria, Ericeira, Figueira da Foz, Luso, Buçaco e, de forma mais aprofundada, Caldas da Rainha.
"São localidades que tiveram um papel preponderante no acolhimento de refugiados judeus e não judeus no contexto da II Guerra", explicou, à agência Lusa.
A disseminação de refugiados por estes territórios aconteceu porque "Salazar procura afastá-los o mais possível de Lisboa, não fossem semear ideias na cabeça dos portugueses, no sentido de que havia outros regimes melhores do que a ditadura portuguesa".
Por aquelas localidades passam "centenas e centenas de refugiados, não por semanas, mas muitas vezes por meses e até anos", apesar do regime "evitar ao máximo que eles fiquem muito tempo no mesmo sítio", através de "uma rotatividade imposta" para "não criarem `raízes` nem movimentos".
Ganham com isso hotéis, pensões, restaurantes, "até então vazios", por causa da guerra. "Acabam por estar cheios destes estrangeiros, em muitos casos endinheirados e que não reclamavam dos preços".
Na região Centro, a chegada de refugiados resulta em "choque dos dois lados": "O choque inicial dos refugiados é precisamente com uma população muito empobrecida, muito pouco letrada e, por outro lado, têm a noção de que aquelas pessoas estão a ter compaixão com eles, o que não acontece nos países avançados da Europa, onde são perseguidos e violentados".
Há também a estranheza dos portugueses, que "olham os refugiados quase como pessoas exóticas, com mulheres que fumam, que traçam a perna, que não usam lenços na cabeça e que saem à rua sem os maridos e frequentam cafés e esplanadas".
Deste convívio entre refugiados e portugueses, surgiram atritos - "e foram bastantes".
Como o Estado impedia os refugiados de trabalhar, organizações judaicas e não judaicas auxiliavam com subsídios mensais, "muitas vezes superiores ao rendimento mensal de uma família de quatro pessoas em Portugal".
Esse facto, aliado "à ociosidade a que eram forçados - passavam muito tempo em cafés, sem fazer nada - levava a muitas críticas", recordou.
Mas o que mais surpreendeu Carolina Henriques Pereira foi, a par da "dimensão cultural injetada nestas localidades", "a sociabilidade entre povos". Entre apertos das autoridades, revelava-se "uma compaixão muito interessante por parte da população".
"A população portuguesa, muitas vezes empobrecida, dava parte do pouco que tinha para apoiar estes refugiados. Surpreendeu-me esta compaixão, esta ligação e conexão que eles conseguiram criar com estas localidades, ao ponto de ainda hoje a memória da sua presença ser tão sentida e tão relevante", concluiu Carolina Henriques Pereira.
Calcula-se que cerca de 50 mil refugiados tenham passado por Portugal durante a II Guerra Mundial. Na região Centro, Carolina Henriques Pereira conseguiu identificar três mil nomes, "mas terão sido bem mais": muitos estiveram no território de forma ilegal, "tentando escapar às malhas da PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado]".
MLE // SSS