Um Conto de Natal

por Rui Sá, João Fernando Ramos

Dois atores, um músico, um psiquiatra e a uma pediatra. O Jornal 2 lançou cinco desafios. O resultado cinco contos ou poemas de Natal que por entre as luzes ou a neve trazem o frio de uma realidade que o brilho de tantas estrelas ilude.
Na voz da atriz Paula Seabra, Garrinchas, o homem que rezava sem fé para que "ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso", salta das palavras de Miguel Torga para, embora indigno, fazer de S. José.

Um Conto de Natal

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra.
A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior.
Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras!
Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam%u2026 Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa.
E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa%u2026 E a verdade é que nem casa nem família o esperavam.
O problema estava em chegar lá.
O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado.
Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais.
Dera uma volta ao lugarejo, e esqueceu-se das horas.
Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer.
Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Chamavam-lhe filósofo%u2026 Importava-se lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito!
Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido!
O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa%u2026 Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas.
Rico panorama! Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida.
À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto.
Caiados, os penedos lembravam penitentes. Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, e então reparou que a porta da capela estava apenas encostada.
Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se .
Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora.
O diabo era arranjar lenha. Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendêlas.
Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se.
Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso.
Mau! Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas!
- desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência.
Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho.
Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear.
Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida? A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

Miguel Torga
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