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Brett Kavanaugh, a coerência de uma certa visão das mulheres na sociedade

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
Jim Bourg, Reuters

Mais ou menos pormenorizados, os relatos das mulheres que acusam Brett Kavanaugh de alegadas acções sexualmente duvidosas – e criminosas – escondidas há décadas num percurso tido como impoluto poderão não ser suficientes para impedir a sua confirmação no Supremo Tribunal, mas há quem veja nos episódios agora vindos a lume um padrão que se identifica na matriz que formou o juiz conservador: a doutrina da subjugação do género feminino e a salvaguarda de uma sociedade de ricos à custa dos esforços dos mais pobres e, entre estes, as mulheres.

A chuva de acusações contra Brett Kavanaugh está a funcionar como forte constrangimento não apenas para a carreira do juiz indicado pelo presidente Trump para o Supremo, como também para os planos das próximas décadas do Partido Republicano.  É um factor que transforma o caso de Brett Kavanaugh num eixo charneira da luta do GOP (Grand Old Party, outra designação dos republicanos).

Assegurando a nomeação, o juiz declaradamente conservador em matérias da moral e dos costumes, assunto tão querido do GOP, garantiria o voto decisivo do Supremo Tribunal dos Estados Unidos em matérias tão sensíveis como o aborto, os direitos das minorias, dos homossexuais ou da venda e uso de armas.

O constrangimento agiganta-se na barricada republicana com a aproximação das eleições intercalares, que estão a ser vistas como uma ameaça à maioria republicana neste momento ainda em posição de garantir uma votação favorável da confirmação de Kavanaugh para o assento vago no Supremo.

O ambiente é mais do que propício a que as equipas de defesa dos republicanos deitem mão a qualquer argumento para descredibilizar as mulheres que avançaram com as denúncias contra uma figura que até há alguns meses, antes de ser colocado sob os holofotes por Donald Trump, era visto como um exemplar e impoluto chefe de família. Segundo o próprio Kavanaugh, detentor de um registro exemplar.

Mas a vitória do caso de Kavanaugh não será apenas crucial para os republicanos. Um artigo desta quinta-feira no site da Jacobin, revista socialista com sede em Nova Iorque, coloca-o no centro de todas as conspirações milionárias e como pedra angular do sistema das famílias mais poderosas do país. Famílias conservadoras, bem entendido. Famílias que assegurando a sua nomeação assegurariam um monopólio do bem-estar nas décadas por vir. De acordo com a Jacobin, a mão deste plano é a Federalist Society (Sociedade Federalista, numa tradução livre).
A Sociedade Federalista

Para a revista, a Sociedade Federalista é a linha condutora que pode ajudar a compreender não apenas o pensamento do juiz Kavanaugh, como também a defesa depreciativa que vem fazendo face àquelas mulheres que deram um passo em frente nas acusações de violação e condutas sexuais impróprias. A Jacobin vê o juiz Kavanaugh como um homem que despreza as mulheres e que vê o gênero feminino como um grupo de seres naturalmente inferiores, destinados ao sacrifício em nome de uma ordem que determina o percurso da sociedade americana.

De acordo com a Jacobin, a verdadeira alma mater de Brett Kavanaugh seria a Sociedade Federalista de Direito e Estudos de Políticas Públicas, mais comumente designada pelo short name "Federalist Society". Nascida na universidade de Yale, é uma organização de conservadores que procuram uma reforma do actual sistema legal americano para o colocar no eixo das interpretações textualistas ou originalistas da Constituição dos Estados Unidos. Trata-se de uma casa que já deu outros juízes ao Supremo, o último dos quais Neil Gorsuch, também nomeado por Donald Trump logo no início do mandato, em Fevereiro de 2017.“[Eles] opõem-se a seja o que for que interfira com o direito concedido por Deus aos mais ricos para disporem como entendem dos seus bens”, refere Michael Avery, autor de The Federalist Society: How Conservatives Took the Law Back from Liberals (A Sociedade Federalista: Como os Conservadores retiraram a Lei aos Liberais).

A Sociedade funciona como um coador pelo qual deverão passar os jovens advogados da nação que pretendam avançar para o plano político do lado conservador, não sendo por isso de admirar que também Kavanaugh tenha esse contacto na sua biografia.

É um quadro degradante do género feminino, aquele que é traçado pela retórica da Sociedade Federalista segundo a Jacobin: num único interesse defendido pelo grupo, a saber, a defesa da propriedade privada, todos os sacrifícios deverão ser implementados na estrutura socioeconómica americana para garantir que os fluxos de bens correm num único sentido, para cima, para as famílias mais ricas e poderosas.

Será nestes terrenos que a sociedade ultraconservadora funda a sua missão, procurando manter um esquema de privilégio à custa dos mais pobres, rejeitando qualquer sistema de ajuda social ou garantias legais no trabalho. A reboque desta ideologia está a luta contra a legalização do aborto e da devolução à mulher do poder sobre o seu corpo. A assistência federal à interrupção voluntária da gravidez implicaria desde logo o dispersar de verbas orçamentais que escapam aos cenários defendidos pelos ultraconservadores do grupo que formou juízes como Kavanaugh, Gorshuch ou Antonin Scalia, que aquele substituiu há pouco mais de um ano no Supremo.

O lugar da mulher na sociedade é particularmente supervisionado pelos membros da sociedade, que temem que a sua libertação e capacidade para decidir coloquem em risco o sistema que vêm desenhando desde a sua fundação, em 1982. A Jacobin dá como exemplo o papel de cuidadoras – uma função que, como se sabe, sustenta todo o sistema social – que as mulheres desempenham sem qualquer remuneração, a suas expensas apenas, ou seja, colocando os custos das necessidades básicas nos ombros do género “mais fraco”. Com a socialização destes custos, como se lhe refere a Jacobin, evita-se a necessária redistribuição da riqueza acumulada na propriedade privada que a Sociedade Federalista tem por missão proteger.

Face à forma transversal como os seus elementos ocupam o sistema legislador, podemos estar aqui perante uma das explicações para a fraca implementação do Estado Providência na organização política norte-americana, um dado que converge com a agenda ultraconservadora da Sociedade Federalista. Outro exemplo apontado pela revista nova-iorquina é o papel fulcral do clube de Kavanaugh aquando da campanha para deter a expansão do Medicaid, ou seja, do acesso generalizado da população a cuidados de saúde. Uma batalha ganha, pelo menos nos Estados republicanos.

O próprio Kavanaugh, no seu papel de juiz, ajudou repetidamente a decidir contra os trabalhadores e em processos de direitos dos consumidores, colocando-se invariavelmente do lado das empresas, lembra a Jacobin, no que reforça o perfil de um homem comprometido com uma causa.
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