EUA. Infeções por Covid-19 atingem em grande escala a comunidade negra

por Marcos Celso - RTP
Reuters

São dados que intrigam as autoridades. A população negra nos EUA está a contrair em maior número o novo coronavírus e a registar mais mortes do que a população branca. Um historial de desigualdades sociais nos Estados Unidos pode estar na base desta discrepância.

Na abordagem a este fenómeno, salta à vista, desde logo, o mapa no Estado da Louisiana, fortemente atingido pela pandemia e onde cerca de 70% das pessoas que morreram eram negras, revelam os dados oficiais divulgados na última segunda-feira. Essa parcela resume-se a apenas um terço do total daquele Estado.

O tema até intriga o próprio presidente Donald Trump, que lança a pergunta: “Por que a comunidade afro-americana é muito, inúmeras vezes mais atingida, do que todos os outros?"

Donald Trump já reconheceu os sinais crescentes desta disparidade e prometeu divulgar estatísticas que permitam ajudar os especialistas a perceber este problema.

Mas esta visão simplista não é partilhada por muitos analistas e políticos atentos ao que se passa no terreno.

Outro dos exemplos a seguir, o de Chicago, que tem mais de metade dos infetados registados como sendo de polução negra, ou seja, um terço da população local. Pior, o registo de mortos é assustador com a população negra a ser dizimada em grande número: correspondem a 72% de todos os que foram vitimados pelo novo coronavírus.

Lori Lightfoot, a primeira mulher negra a ser eleita presidente da Câmara de Chicago fica impressionada com estes registos e considera-os “impressionantes” e confessou que as estatísticas estavam “entre as coisas mais chocantes que viu como autarca”. Ao divulgar os dados, Lori Lightfoot apelou à “ação de todos”.
Igualmente, no distrito de Nova Orleans, perto de Milwaukee, com 27% de moradores negros, o número de casos positivos é quase duas vezes maior do que o registado entre brancos, segundo os dados oficiais das autoridades locais.

Por agora, os especialistas preferem não tirar conclusões precipitadas, mas prometem estar atentos, pois os casos descritos, e que atingem maioritariamente a população afro-americana, são relatados em apenas algumas regiões, o que, por si só, não permite chegar a conclusões e tendências a nível nacional. No entanto, as estatísticas não mentem e mostram que os negros contraem a nova doença numa maior escala em determinadas cidades e Estados dos EUA.

Desigualdades sociais e o panorama epidemiológico nos EUA 

Com maior incidência na população negra em algumas cidades, os analistas pensam - não sendo uma certeza - que algumas explicações podem ser encontradas nas desigualdades sociais, ou mesmo raciais, num país que está velozmente a bater todos os recordes de contágio pelo SARS-CoV-2, o vírus mortal.

Os dados sociais nos EUA há muito que retratam um panorama de desigualdades que afetam as minorias, referem especialistas. Alguns estudiosos sobre saúde pública veem, na abordagem à evolução do coronavírus no país, um retrato e uma consequência inevitável face a uma pandemia que tende a atingir a parte mais fraca da sociedade, já de si com um cenário de desigualdades sociais "entranhadas", sublinham.

Assim, nesta visão vinga a tese de que são os americanos negros os mais vulneráveis em qualquer epidemia, uma vez que muitos não têm seguro de saúde, sem acesso a testes e tratamentos. Além disso, concluem os mesmos especialistas, neste caso particular do novo coronavírus, são os americanos negros que não podem, na sua maioria, recorrer ao teletrabalho, pois não possuem empregos que lhes permitam ficar em casa, o que os obriga a sair e andar nas ruas, no trânsito e nos transportes, fatores favoráveis à infeção pela Covid-19.

O jornal The New York Times dá como exemplos os casos de Donnie Hoover, um juiz de Charlotte, na Carolina do Norte, que dificilmente controla a tosse em público, ou de LaShawn Levi, assistente médica em Chicago que recorre ao autocarro para chegar ao trabalho e que recorreu ao chá e xarope para tentar parar a tosse - tudo como a sua avó lhe ensinou. Em Detroit, por exemplo, Glenn Tolbert, líder sindical dos motoristas de autocarros, tossia tanto que foi testado, após conselho do autarca da cidade e que agora "não sabe onde aconteceu a infeção".
As questões sociais são assim vistas como influenciadoras das estatísticas de infeção e morte causadas pelo novo coronavírus. Os números em que a população negra é mais atingida pela doença repetem-se em Estados como a Carolina do Norte e a Carolina do Sul, onde se registam percentagens maiores de casos positivos nos residentes negros do que estes representam em termos populacionais. 

O mesmo acontece perto de Las Vegas, em Connecticut. No caso do Minnesota, a percentagem de contágio é proporcional à parcela de negros na população.

No entanto, o mapa fica incompleto, pois Estados como os de Califórnia, Nova Jersey, Nova Iorque e Washington não forneceram até à data os dados gerais sobre a etnia dos doentes da Covid-19, algo que está a mexer com a política nos EUA, e já demonstrado numa carta de senadores democratas: “Apesar da vulnerabilidade das pessoas negras nesta emergência de saúde pública, informações mais detalhadas sobre características raciais e étnicas das pessoas tratadas e testadas para a Covid-19 não existem”. 

Outras das conclusões a que chegaram alguns estudiosos, como é o caso de Sharrelle Barber, professora assistente de pesquisa em epidemiologia e bioestatística na Universidade Drexel, é que os dados de infeções sobre os quais se conhecem os lugares refletem desigualdades estruturais de longa data. 

Sharrelle Barber diz que que algumas ações do governo, que datam dos anos 1930, deixaram muitos bairros com residentes negros sem oportunidades de emprego, residência estável, lojas com comida saudável, o que, sublinha, é meio caminho andado para se registarem números desproporcionais de asma e diabetes, além de saírem de casa para trabalhar. Segundo afirma, não é biológico, mas sim trata-se de  “desigualdades estruturais que vão moldar as desigualdades raciais na pandemia”.

"Risco baixo para os EUA"

As desigualdades de longa data apontadas na sociedade americana chegam ao ponto de se suspeitar ser menos provável que os médicos encaminhem afro-americanos para testes de Covid-19. 

A falta de comunicação antecipada sobre a ameaça do Covid-19, ainda agora reforçada por Trump com críticas à Organização Mundial de Saúde (OMS) e ainda algumas mensagens inapropriadas fizeram certas comunidades negras acreditar que os negros eram imunes à doença. 

De toda uma desatenção e crença de que o vírus não atingiria em força os EUA, chegou-se a um cenário dramático em terras do "Tio Sam", pois as medidas de contenção, para enfrentar e responder à pandemia, escassearam, e medidas que preparassem os serviços de saúde para o que veio a acontecer, tardaram, e, só muito recentemente, é que os norte-americanos acordaram para uma realidade que fala por si: mais de mil mortes por dia, 380 mil infetados e perto de 12 mil vítimas mortais, num país onde centenas de milhares de pessoas podem perder a vida face à Covid-19.

Recorde-se que o presidente Donald Trump dizia em finais de fevereiro que o "risco" do vírus para os EUA era "muito baixo" graças às suas medidas.



pub