Gentrificação: as cidades alemãs disputadas palmo a palmo

por Texto: António Louçã. Imagem: Carlos Oliveira. Edição: Nuno Patrício, Pedro Pina
Manifestantes em Março de 2013, com a frase irónica: "Ninguém tem a intenção de construir um condomínio de luxo". Fabrizio Bensch, Reuters

Os preços do imobiliário sobem e só fica quem pode pagá-los. De mãos dadas com a conjuntura favorável da economia, está uma crise social que tem no seu centro o problema da habitação.

A subida de preços leva os interesses imobiliários a disputarem ferozmente cada polegada de espaço público que, por qualquer motivo pareça ou efectivamente se torne disponível.

O antigo aeroporto de Tempelhof viu de tudo durante um século de existência: os zepelins e outras "donas elviras" da aviação, duas guerras mundiais, uma guerra fria e a sua ponte aérea. Em 2008 foi desactivado e logo o lobby do imobiliário avançou com uma série de projectos de construção para ocupá-lo. Uma forte movimentação da população local, dinamizada por grupos ambientalistas, levou a congelar os projectos. O aeroporto ficou como espaço de lazer e de prática desportiva.

Entretanto, vieram os refugiados do Maghreb, do Médio Oriente e em especial da Síria. Nos hângares do velho aeroporto instalaram-se tendas com 7.000 refugiados. O lobby do imobiliário aproveitou a oportunidade para sugerir que se reabrisse a discussão sobre novas construções, agora para permitir acolher os refugiados.

(Refugiados no aeroporto de Tempelhof. Foto de Fabrizio Bensch, Reuters)

Um outro espaço público que foi disputado entre negocistas e ambientalistas foi o da East Side Gallery. Esta constitui o último resto importante do Muro de Berlim e no início foi valorizada com pinturas de artistas de todo o mundo, entretanto parcialmente destruídas por actos de vandalismo. À sua frente, a poucos metros, ergue-se agora a imponente "Cidade da Mercedes", ainda em vias de alargamento, com um estaleiro em que avulta pelo menos uma dezena de gruas.

A ameaça mais incisiva contra a preservação desse vestígio de Muro veio, contudo, de Maik Uwe Hinkel. O promotor imobiliário, hoje um dos empresários mais ricos da Alemanha, é um antigo cidadão da RDA, onde trabalhava simultaneamente para a Stasi e para o KGB.

O projecto de Hinkel para a East Side Gallery era o de construir, mesmo ao lado, uma torre para habitação de luxo, que implicaria a destruição pelo menos de uma parte do Muro remanescente. Em Março de 2013, milhares de manifestantes barraram-lhe o caminho.

Um dos cartazes dos manifestantes respondia às declarações do promotor imobiliário, com uma frase irónica que podia resumi-las: "Ninguém tem a intenção de construir um condomínio de luxo". A ironia consiste num jogo de palavras com a célebre frase do presidente da RDA, Walter Ulbricht, em vésperas de se começar a construir o Muro de Berlim: "Ninguém tem a intenção de construir um Muro".

No balanço global, a manifestação de Março de 2013 teveêxito. Também aqui a pressão imobiliária teve de ceder perante os defensores da cidade.

(Manifestação em defesa da East Side Gallery. Foto de Fabrizio Bensch, Reuters)

Mas os interesses imobiliários não só os olhos postos nos espaços públicos. O aumento do preço por metro quadrado levou-os também a redescobrirem cada pequeno espaço verde, e a colonizarem-no com novas construções. Ringo Schuster, activista de uma associação contra os processos de despejo, mostrou à RTP um dos aprazíveis pátios traseiros do bairro de Kreuzberg, agora em vias de ser ocupado por novas construções.

Schuster chama a atenção para a inversão de tendência que estas construções simbolizam, depois de um movimento de ocupações de casas devolutas nos anos 1970 e 1980 ter libertado muito espaço nesses pátios traseiros e deles ter retirado numerosas construções supérfluas.

Ringo Schuster

A subida em flecha dos preços dos alugueres colocou debaixo de fogo todos os titulares de contratos, sejam eles para habitação ou comércio. Josephinn Hollunder, originária de Leipzig, veio viver para Berlim e reside desde há vários anos num bairro que agora passou a ser cobiçado pela especulação imobiliária.

O senhorio não pode simplesmente despejá-la e pediu então que a casa lhe fosse entregue para habitação própria. Mas a inquilina contesta a veracidade e a boa fé da alegação.

Josephinn Hollunder


Hans Georg Lindenau, conhecido como HG, é uma figura pitoresca do quotidiano berlinense, bem conhecido no velho bairro de Kreuzberg e objecto de artigos e reportagens em vários órgãos de imprensa alemães e estrangeiros. Também ele tem estado sob fogo cerrado dos senhorios para renunciar ao seu contrato de aluguer, para habitação e para um peculiar estabelecimento comercial.

Hans Georg Lindenau


No processo de despejo, os advogados do senhorio apresentaram todo o tipo de alegações, incluindo a de negarem o estatuto de HG como portador de deficiência.

A motivação das pressões sobre inquilinos tão diversos como Josephinn e HG tem uma raiz comum: a subida dos preços, nuns casos mais difícil de calcular, noutros menos, mas sempre em valores astronómicos.

Um relatório do Governo federal divulgado em Die Zeit mostra que no conjunto da Alemanha os alugueres aumentaram em média 4,4 por cento entre 2014 e 2016, e também que essa subida representa uma aceleração face à média de 3 por cento registada em 2013. Além disso, a aceleração da subida é mais pronunciada nas grandes cidades, onde atinge 5 por cento anuais.


O aumento de preços do imobiliário, numa situação em que tende a diminuir a massa salarial num mercado de trabalho precarizado, tem como consequência a expulsão para os subúrbios de muita gente que até aí vivia nas cidades.

A este fenómeno de gentrificação se refere Ulrich Schneider, director-geral do Deutscher Paritätischer Wohlfahrtsverband, organização laica de combate à pobreza.

Ulrich Schneider

Axel Wunschel, o porta-voz da associação industrial da construção civil em Berlim e Brandenburgo, aponta o dedo à negligência dos políticos e ao seu bloqueio do desenvolvimento urbano durante vários anos, como responsável pela tendência para a gentrificação.

Segundo esta lógica, se se tivesse permitido a construção de fogos de habitação em quantidade suficiente, não teria havido um tal desequilíbrio entre oferta e procura, nem uma tal subida de preços, que torna a habitação em bairros centrais das cidades exclusivamente acessível aos mais ricos.

Axel Wunschel

Wunschel aplaude a viragem que considera estar em curso na atitude dos políticos, embora sublinhando sempre que ela vem "quase demasiado tarde" e que é preciso recuperar o tempo perdido.

Ringo Schuster aponta, no entanto, um exemplo de construção que veio agravar a gentrificação e tornar-se um dos seus símbolos mais agressivos: o Carloft edificado na Regensburgerstrasse. Esta rua situa-se no bairro popular e multiétnico de Kreuzberg.

No Carloft, um condomínio de luxo, os moradores podem colocar o carro num elevador e levá-lo para casa, para terem a certeza que ele não será vandalizado por vizinhos hostis à presença desse edifício e dessa nova população que encaram como corpo estranho no bairro.

Daniel e sua mulher, Nadja, mantêm em funcionamento desde há vários anos uma padaria, também em Kreuzberg. Num primeiro momento, eles tiveram de haver-se com senhorios ingleses que, tudo indicava, seriam indiferentes e insensíveis à actividade realizada no estabelecimento.

Para denunciar os alugueres comerciais, o processo é mais simples que para os de habitação e por isso a padaria "Filou" encontrou-se num primeiro momento confrontada com uma pretensão dos senhorios que parecia inegociável.

Daniel

Mas a população local respondeu com um empenhamento inesperado aos vários apelos de associações contra a gentrificação. Num manifestação realizada diante da padaria, juntaram-se mais de 2.500 pessoas.

Surpreendidos pela amplitude do protesto, os senhorios reconsideraram, renovaram o contrato e elaboraram mesmo um contrato-tipo para outros alugueres comerciais que têm igualmente em propriedades suas.

A gentrificação começou há décadas atrás, sem se dar por ela e quase sem se saber ainda como chamar-lhe. Os seus símbolos, como o Carloft, começaram a erguer-se e a ocupar espaços ainda nos anos 1990, quando o Muro estava acabado de cair e Berlim em vias de ser reunificada. Hoje, a gentrificação é a palavra mais em voga e dá o nome a uma das facetas mais agressivas da degradação social em curso para amplos sectores da população.
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