Desde que foi eleito presidente da Argentina, Javier Milei tem trocado posições ideológicas por técnicas, dogmas por pragmatismo e posturas extremistas por flexibilidade, abandonando algumas das radicais bandeiras de campanha, numa metamorfose que surpreende aliados e opositores.
"Essa metamorfose é consequência mais de uma necessidade do que de uma convicção. A realidade impõe pragmatismo. Daqui em diante, veremos um Milei muito mais moderado e sem espaço para posicionamentos ideológicos, em linha com o que a sociedade argentina e os principais atores internacionais esperam. Isso será crucial para o seu êxito durante este primeiro período tão difícil que o próprio Milei tem anunciado", explica à Lusa o analista político, Patricio Giusto, diretor da consultora Diagnóstico Político.
Milei tem advertido os argentinos que os próximos seis meses serão "duríssimos" porque "acabou o dinheiro", obrigando o novo Governo a um "severo ajuste orçamental", a partir da posse em 10 de dezembro, sem o qual "o país vai direto à hiperinflação".O presidente eleito prevê, pelo menos, seis meses de uma recessão combinada com alta inflação, antes de começarem a aparecer os primeiros resultados da política de choque orçamental.
"Milei precisa de apoio para todas as suas profundas reformas durante o momento mais crítico desta primeira etapa. Para poder aproximar setores opositores, precisa de uma posição equilibrada e sensata, abandonando as posturas mais radicais de campanha", acrescenta Patricio Giusto.
No terreno doméstico, Javier Milei optou por um ministro da Economia, Luis Caputo, contrário à prometida eliminação do Banco Central e à dolarização da economia. O principal mentor do plano de substituir o peso argentino pelo dólar norte-americano, Emilio Ocampo, anunciado ao longo da campanha como futuro presidente do Banco Central, foi obrigado a renunciar ao cargo, antes mesmo de assumi-lo. A prometida dolarização, rejeitada por dois terços da população, morreu antes de nascer.
O anunciado ajuste orçamental de défice zero já em dezembro tem agora como meta todo o ano de 2024. De "cortar tudo o que quiser", Milei passou a "cortar tudo o que der".
Todos os futuros ministros e designados nos órgãos do Estado têm provada capacidade na área e estão cercados de técnicos acima de qualquer escolha política. Milei também tem ouvido os conselhos e aceitado indicações do ex-Presidente Mauricio Macri (2015-2019), reconhecido pela ponderação.
No campo internacional, corrigiu a sua estremecida relação com o papa Francisco, a quem tinha definido como "representante do maligno na Terra" e "imbecil que defende a justiça social". Num telefonema, o papa disse que visitaria a Argentina nos próximos meses, uma honra que não tiveram os presidentes argentinos durante os últimos dez anos, devido à polarização política no país."Eu disse que sua santidade seria recebida com todas as honras de um chefe de Estado e do chefe espiritual dos argentinos porque o catolicismo é a religião maioritária na Argentina", disse Milei, um ex-católico convertido ao judaísmo.
Depois de exaltar o aliado Donald Trump e de considerar Joe Biden um socialista, viajou até Washington para se reunir com o conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, braço direito de Biden, passando antes por Nova Iorque, onde se reuniu com o ex-presidente Bill Clinton, democrata que Joe Biden ouve.
Também depois de chamar ao presidente brasileiro, Lula da Silva, "comunista, ladrão e corrupto", escreveu uma carta pessoal a convidá-lo para cerimónia de posse, onde estará o rival de Lula e aliado de Milei, Jair Bolsonaro. A carta foi levada pessoalmente pela futura chanceler, Diana Mondino, numa inesperada viagem relâmpago a Brasília. O Brasil é o principal parceiro político e comercial da Argentina.
"Convidei Lula porque é do interesse dos argentinos. Eu posso ter as minhas preferências, mas tenho de dar prioridade ao bem-estar dos argentinos. Não posso desconhecer o papel de um sócio comercial da envergadura do Brasil. Isso não quer dizer, no entanto, que seja um aliado estratégico. Uma coisa é a questão comercial; outra, a política", justificou Milei.
"Os candidatos fazem campanha presidencial com as suas intenções transformadoras, mas depois de eleitos governam com os seus medos. Milei está a fazer o que fazem todos os presidentes: está a recuar nessa alta voltagem da campanha. Isso acalma o sistema e todos se tranquilizam", explica à Lusa o analista político, Jorge Giacobbe, especialista em opinião pública.
Nem todos os presidentes foram assim. Os aliados Donald Trump e Jair Bolsonaro, por exemplo, cercaram-se de alas ideológicas que, até agora, não aparecem no gabinete ministerial de Milei.
"O que a sociedade argentina quer de Milei é que ele resolva o drama da inflação. Estão os que votaram em Milei porque é louco o suficiente para mudar o sistema e os que o repudiam por ser um louco. O resultado da gestão é o que vai definir se essa loucura é positiva ou negativa", interpreta Giacobbe.
O próprio Javier Milei tenta explicar a metamorfose que surpreende o país: "Sempre fui uma pessoa pragmática. Eu encaro a Presidência como um trabalho. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para realizá-lo da melhor maneira possível. Há coisas que acrescentam na hora de atingir o objetivo e outras não. Logo, as que não acrescentam, ficam de lado. Eu tenho de resolver o problema da inflação. Precisamos voltar a crescer e que esse crescimento gere empregos de alta produtividade e melhores salários. Tudo aquilo que for um desvio desse objetivo, fica de lado".