Juristas defendem que se altere prescrição de crimes de abusos de menores em Timor-Leste

por Lusa

Juristas recomendam que Timor-Leste altere as regras de prescrição de crimes sexuais contra crianças, seguindo práticas internacionais, para contar o prazo legal apenas depois de a vítima atingir a maioridade, reconhecendo que a denúncia do crime pode demorar.

"O facto de, em Timor-Leste, o prazo de prescrição do crime de abuso sexual de menor ser de 20 anos, contados a partir do momento da prática do crime, demonstra que há ainda um caminho a fazer quanto à proteção das crianças vítimas de abusos sexuais", referem as duas juristas numa nota divulgada pela Jurídico-Social Consultoria (JU,S) em Díli.

"O prazo prescricional aplicável aos crimes de abusos sexuais de crianças não respeita o tempo que as vítimas necessitam para compreender a dimensão do que lhes aconteceu e se empoderarem para denunciarem", sustentam no texto a que a Lusa teve acesso hoje.

Na prática, consideram, contar o prazo de prescrição a partir do momento da prática do crime, "deixará impunes muitos crimes de abusos sexuais contra crianças" , sendo que "a prática dos Tribunais já está sedimentada no sentido de que a demora em denunciar não reduz a credibilidade da palavra da vítima".

Motivo pelo qual, consideram no artigo, "é preciso que o restante da sociedade igualmente se desfaça desses mitos".

A recomendação é feita numa nota jurídica informativa do final do ano passado, preparada pela jurista Rute Baptista, da Escola de Direito da Universidade do Minho e Sofia Larriera Santurio, coordenadora da Fair Trial Clinic na Universidade de Amesterdão.

Rute Baptista é investigadora e consultora especializada em justiça de género, no Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) da Escola de Direito da Universidade do Minho, e foi membro do grupo de coordenação, revisão científica e redação da Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, e Sofia Larriera Santurio é advogada e pesquisadora especializada em Direito Penal e Direitos Humanos.

O texto refere alterações aprovadas noutros países, como Espanha que conta o prazo de prescrição apenas a partir do momento em que a vítima completa 35 anos, ou Portugal onde uma proposta idêntica foi aprovada na generalidade na Assembleia da República.

A questão da prescrição de crimes desta natureza voltou ao debate em Timor-Leste devido ao caso que envolve o ex-administrador apostólico de Díli, Ximenes Belo, que alegadamente cometeu abusos sexuais de crianças nas décadas de 1980 e 1990.

A denúncia foi feita num jornal holandês, tendo pouco tempo depois o Vaticano anunciado ter imposto sanções disciplinares ao bispo timorense nos últimos dois anos, após alegações de que o Nobel da Paz teria abusado sexualmente de menores.

Em comunicado, o porta-voz do Vaticano diz que o gabinete que lida com casos de abuso sexual recebeu alegações "sobre o comportamento do bispo" em 2019 e, no prazo de um ano, tinha imposto sanções. Estas sanções incluem limites aos movimentos do bispo e ao exercício do seu ministério, bem como a proibição de manter contactos voluntários com menores ou com Timor-Leste.

As medidas foram "modificadas e reforçadas" em novembro de 2021 e em ambas as ocasiões Ximenes Belo aceitou formalmente o castigo, acrescenta-se no comunicado.

A questão da prescrição já tinha estado em causa no único julgamento nos tribunais timorenses de um ex-membro do clero, o norte-americano Richard Daschbach condenado em dezembro do ano passado a 12 anos de prisão -- pena confirmada pelo Tribunal de Recurso -- por cinco crimes de abuso sexual de menores, cometidos num orfanato em Timor-Leste.

Em termos individuais e pelos vários crimes, o coletivo de juízes aplicou penas parcelares que totalizam mais de 37 anos de prisão, com o cúmulo jurídico de penas a ser de uma pena única de 12 anos de prisão.

Na sentença, e no caso de duas das vítimas, o acórdão nota que os alegados crimes ocorreram quando em Timor-Leste ainda se aplicava o código penal indonésio pelo que, nesse âmbito, os crimes já tinham prescrito.

O artigo recorda que em todo o mundo 120 milhões de meninas com menos de 20 anos -- uma em cada 10 - foram vítimas de abuso sexual, com "milhões de rapazes pelo mundo fora a manter-se em silêncio".

E relembra que as crianças raramente relatam de imediato o crime de que foram alvo, por questões que vão desde o medo em relação ao autor do crime, ao sentimento de impotência da vítima, num comportamento apelidado de "síndrome de acomodação ao abuso sexual infantil".

"Todo este processo vivido pela vítima de abuso sexual justifica, o alargado espaço de tempo que medeia, muitas das vezes, a prática do crime de abuso e a sua denúncia. Há evidências que mostram que, muitas das vezes, as pessoas que foram vítimas de abusos sexuais quando crianças só tentam denunciar ou buscar apoio após os 30 ou 40 anos de idade. E fazem-no, muitas das vezes, com a principal motivação de parar ou evitar o abuso sexual de outras crianças", refere.

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