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Lavandarias ibéricas? O colapso das ditaduras e o financiamento dos partidos alemães

por António Louçã - RTP
Alfred Nau (à esq.), com Herbert Wehner e Helmut Schmidt DR

A realidade ultrapassa a ficção. Durante os anos da "transição democrática", o apoio financeiro alemão aos partidos ibéricos, para impedir uma suposta deriva a caminho do socialismo, foi geralmente entregue em maços de notas e por vezes sem recibo. Uma dúvida subsiste desde há muito: voltou parte desse dinheiro para as mãos dos partidos alemães?

Em 1983, depois de quase três décadas como tesoureiro do SPD, Alfred Nau tinha nas contas do partido 7,6 milhões de marcos de uma doação confidencial, sem dador identificado. A direção do partido, alarmada, quis saber de onde vinha o dinheiro, mas Nau recusava obstinadamente satisfazer essa curiosidade, invocando o sigilo que prometera ao mecenas em causa.

A direção, preocupada, insistiu e pressionou. Mas Nau morreu precisamente nessa altura e levou consigo segredos que possivelmente mais ninguém conhecia. A agenda onde apontava as suas reuniões era meticulosamente destruída no princípio de cada ano e por esse lado também era impossível saber mais alguma coisa.

Depois, já nos últimos anos do século, a CDU iria ver-se também envolvida num caso de financiadores anónimos e potencialmente comprometedores. Um desses financiadores, o traficante de armas Karlheinz Scheiber, era conhecido e deixava espaço para as mais inquietantes suposições em relação aos que continuavam a ser ignorados.

Entrevistado em 1999, o ex-chanceler Helmut Kohl admitiu que a CDU mantivera contas para angariação de contribuições não declaradas, mas recusou, como Nau, revelar a identidade de dadores que lhe tinham pedido sigilo e a quem ele empenhara, segundo disse, a sua palavra de honra.

O "caso das contribuições" da CDU (Spendenaffäre) suscitou um renovado interesse da imprensa por várias fontes de financiamento dos partidos alemães. E, em fevereiro de 2000, começaram a vir a público investigações, principalmente do diário Süddeutsche Zeitung e do semanário Der Spiegel, que voltavam à questão, conhecida desde pelo menos uma década antes, de uma parte desse financiamento poder provir de verbas destinadas pelo Governo Federal alemão a apoiar determinados partidos nos países em transição pós-ditatorial.
"Operação Polipo" e "Fundo Reptiliano"

O contexto da história tem que ver com a atitude norte-americana, que o secretário de Estado Henry Kissinger deu a conhecer ao Governo Federal alemão logo numa fase precoce da revolução portuguesa. O Departamento de Estado não tencionava financiar quaisquer partidos portugueses, por considerar improvável que as forças democráticas pudessem prevalecer sobre os comunistas.

Na Alemanha Federal, pelo contrário, subsistia a convicção de que era possível canalizar a revolução portuguesa para um regime parlamentar e intervir em Espanha para evitar o desencadeamento de uma revolução ao estilo português. E em breve se desenhou um amplo consenso no sentido de apoiar partidos anti-comunistas da Península Ibérica. O consenso incluía as quatro principais forças parlamentares alemãs: SPD e CDU, mas também a social-cristã CSU e o liberal FDP.

Considerando o melindre político do tema, os quatro partidos confabulados assentaram também em pôr a ideia em prática com a máxima discrição. Fizeram-no sob a forma de um saco azul dos serviços secretos (BND), que nos primeiros anos passou pelas mãos da chancelaria federal e, depois, a partir de 1982, pelas do Auswärtiges Amt (o MNE alemão). Como era de regra numa operação altamente conspirativa, esta teve também um nome de código: "Operação Polipo".

A imprensa alemã que depois investigou este saco azul chamou-lhe sarcasticamente "fundo reptiliano", aludindo a outro que fora instituído por Bismarck, para corromper jornalistas sem que o público o soubesse.
O consenso teve efeitos práticos relevantes e estima-se em 50 milhões de marcos o valor entregue a partidos portugueses e espanhóis entre 1975 e 1982.

Para termos uma ideia da importância destas transferências, devemos recordar que a Alemanha Federal orçamentou 70 milhões de marcos em 1975, como ajuda de Estado a Estado, para apoiar a economia portuguesa e com isso impedir a radicalização do processo revolucionário.

Mesmo considerando tratar-se aqui de um crédito referido a um ano para um só país, em comparação com os sete anos de transferências para os partidos de Portugal e Espanha, e mesmo descontando o valor da inflação (baixo, na Alemanha), podemos avaliar por aí a prioridade elevada que os partidos do Bundestag atribuíram a apoiar os partidos ibéricos.
O problema dos refluxos financeiros

A principal interrogação que se colocou no âmbito das investigações sobre estes financiamentos foi, no entanto, sobre a eventualidade de ter havido uma combinação de que parte do apoio aos partidos ibéricos refluísse para a Alemanha, indo parar precisamente às mãos dos partidos alemães que tinham arquitectado este esquema. 

Se assim fosse, os partidos ibéricos teriam funcionado como lavandaria, a reciclar parte dos apoios do Estado alemão federal como financiamento para os partidos alemães federais.

A imprensa alemã que desde há três décadas investiga o tema nunca pôde provar que tenha havido esse refluxo de dinheiro do Estado para as mãos dos partidos. Mas elencou uma série larga de histórias, indícios e incongruências que ficaram por explicar.

Assim, apurou Der Spiegel que o financiamento era feito com dinheiro vivo, entregue pelo BND na chancelaria, pelo menos uma vez por mês. Manfred Schüler, chefe de Gabinete do chanceler Helmut Schmidt, entregava maços de notas a emissários de cada um dos partidos: geralmente era Hans Matthöfer que vinha pelo SPD, Walther Leisler Kiep pela CDU, Reinhold Kreile pela CSU, Harald Hofmann e mais tarde Günter Verheugen pelo FDP.
Walther Leisler Kiep era o homem que viria depois, a partir do início dos anos 1990, a ser julgado e condenado em vários processos pelas suas manipulações financeiras como tesoureiro da CDU.

Cada um dos quatro partidos deveria depois fazer chegar aos partidos irmãos da Península Ibérica este dinheiro que no Orçamento de Estado alemão figurava apenas como verba destinada aos serviços secretos (a rubrica era designada como "Gastos secretos para fins especiais").

Pelos vistos, o chanceler Schmidt sentia-se incomodado com os contornos da operação e preconizava o seu fim, tão rápido quanto possível. Willy Brandt, entretanto presidente da Internacional Socialista, considerava-a pelo contrário útil e viria a escrever nas suas memórias: "Ainda hoje tenho orgulho nela [a operação]".

Só por si, o secretismo da "Operação Polipo" não implica necessariamente que tenha havido refluxos de dinheiro para as mãos dos partidos alemães. Em fevereiro de 2000, Der Spiegel citava a então tesoureira do SPD, Inge Wettig-Danielmeier, bem como os responsáveis democratas-cristãos Uwe Lüthje e Horst Weyrauch, todos a negarem que tenha havido tais refluxos.

No entanto, citava também estes dois responsáveis democratas-cristãos a admitirem que nunca houve uma auditoria interna do partido sobre o destino dado aos dinheiros do BND, o que sempre deixava subsistir o perigo de ele ser encaminhado de forma pouco transparente, tanto mais que "a maioria foi dinheiro levado em malas". E cita o responsável de uma Fundação, residente em Madrid, a dizer que, "evidentemente, houve dinheiro que voltou para a Alemanha".

Apesar de os partidos ibéricos contemplados com as ajudas terem de emitir um recibo, e de tudo dever passar pelo escrutínio do presidente do Tribunal Federal de Contas, o certo é que os recibos nem sempre foram emitidos. Em especial a CDU, nos anos 1980, apresentou algumas contas apenas com o seu próprio registo da entrega. O presidente do Tribunal de Contas admoestou sobre a irregularidade mas acabou por conformar-se.

Já em 1990 era conhecido o apetite dos partidos ibéricos pelos marcos ocidentais. Der Spiegel citava então um dos envolvidos na operação de financiamento a dizer que "eles [os partidos] eram insaciáveis. Quem viajasse para Madrid ou Lisboa tinha sempre de levar na bagagem envelopes com dinheiro".

Willy Brandt, enquanto presidente da Internacional Socialista, era alvo constante dos pedidos de apoio dos partidos ibéricos. E a Fundação Friedrich Ebert entregava regularmente dinheiro vivo ao PS, por intermédio do então responsável da sua delegação em Lisboa, Peter Hengstenberg.

Interrogado a esse respeito pela Procuradoria-Geral alemã, Hengstenberg recordou tê-lo feito "umas dez a doze vezes", começando em 1979. Para a primeira entrega, encontrou-se no final desse ano com socialistas portugueses, dos quais disse contudo ter esquecido os nomes.
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