Manobra de diversão. Bolsonaro acusado de usar Covid-19 para desflorestar Amazónia

por Joana Raposo Santos - RTP
Na imagem, membros de uma tribo indígena mostram parte de uma área desflorestada da Amazónia. Foto: Ueslei Marcelino - Reuters

O Congresso brasileiro poderá estar prestes a aprovar um decreto que promove a ocupação e desflorestação da floresta amazónica. Ativistas acreditam que esta medida, entre outras que têm sido aprovadas, vai originar uma destruição nunca antes vista das áreas protegidas e que o Governo está a aproveitar a pandemia de Covid-19 para fazer passar estas leis de forma despercebida.

Várias organizações ambientalistas temem que a apropriação de terras em florestas protegidas e reservas indígenas seja em breve legalizada através de um decreto presidencial que está a aguardar a aprovação no Congresso brasileiro, depois de outras medidas nesse sentido terem já sido estabelecidas pela Fundação Nacional do Índio, órgão que pertence ao Estado.

O decreto, lançado em dezembro passado pelo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, é conhecido por MP910 e permite aos agricultores a legalização de terrenos de até 2.500 hectares que tenham sido ilegalmente ocupados em reservas controladas pelo Estado até 2018.

“A medida permite que áreas públicas que foram ilegalmente desflorestadas com o objetivo de apropriação de terras sejam tornadas privadas”, explicou ao Guardian o grupo ambientalista Imazon. Até procuradores federais concordaram que o decreto irá facilitar ainda mais a apropriação de terrenos.

O decreto de Bolsonaro tem até 19 de maio para ser aprovado pelo Congresso brasileiro. Legisladores do lobby agrário têm, porém, estado a exercer pressão para que o documento seja votado antes dessa data, enquanto a pandemia de Covid-19 continua no centro das preocupações do país, que vê o número de infetados a galopar diariamente.

Esses legisladores propuseram ainda alterações que tornarão ainda mais fácil e barato legalizar terras ocupadas em áreas protegidas, mesmo para proprietários que já tenham recebido terras e as tenham depois vendido.
Mais medidas aprovadas durante a crise pandémica
Para piorar a situação, a Funai - Fundação Nacional do Índio, que pertence ao Estado - publicou uma nova regra que permite a quem ocupa terrenos em reservas indígenas a regularização dos mesmos. A comissão de trabalhadores da Funai criticou essa decisão, considerando que a mesma faz da Fundação “um notário estatal para ocupantes ilegais de terras em áreas indígenas”.

O Conselho Nacional de Direitos Humanos, entidade federal independente do Brasil, pediu que a regra seja revogada, frisando que 237 reservas indígenas ainda não completaram o processo de demarcação - que pode levar décadas e que requer aprovação presidencial, sendo que Bolsonaro já prometeu não demarcar “nem mais um centímetro” de terrenos indígenas.

O mesmo Conselho lembrou que existem também seis reservas de “uso restrito” habitadas por grupos isolados sem resistência imunitária a doenças como a gripe comum. Agora, os ocupantes ilegais de terras podem pedir a legalização até nestas reservas. Na Amazónia a apropriação de terras é uma prática comum, tendo como finalidade a desflorestação para que nos espaços anteriormente ocupados por árvores seja colocado gado ou plantações.

“Os povos indígenas estão sozinhos e nós temos de lutar contra o vírus”, que já matou centenas de pessoas na Amazónia, “os mineiros e os madeireiros. Não sabemos qual das coisas é a pior”, lamentou ao Guardian Alessandra Munduruku, líder indígena do Estado de Pará.

Quarenta e nove procuradores federais de todo o Brasil exigem que a regra da Funai seja anulada devido à sua “inconstitucionalidade e ilegalidade”, alegando que encoraja os ocupantes ilegais de terras e faz com que estes esperem mais medidas a seu favor no futuro.

“A Amazónia funciona como um mercado de ações. O que é dito por quem está no poder realmente influencia o comportamento das pessoas”, disse ao Guardian Daniel Azevedo, um dos procuradores contra a regra da Funai. “A regra transmite a ideia de que se alguém desflorestar agora em 2020 ou em 2021, poderá em breve tornar-se proprietário legal dessa área. A tendência será a elevada desflorestação da floresta nos próximos anos”, lamentou.

Já a associação ambientalista Kanindé acredita que “os invasores pensam que podem entrar nas reservas indígenas devido à agenda do Governo”, utilizando “a Covid-19 como desculpa e como disfarce”.
“Boa lei para 99 por cento das famílias”, defende o Governo
Por outro lado, quem defende a existência de facilidades para os ocupantes de terras protegidas argumenta que estas ajudarão a regularizar a situação atualmente caótica a nível de quem detém terrenos, permitindo ainda aos agricultores aceder a créditos e melhorar a produtividade, fazendo com que estes não precisem de alargar a área ocupada em zonas protegidas.

O senador brasileiro Irajá Abreu, que está a guiar o decreto de Bolsonaro no Congresso, já afirmou que o MP910 é “uma boa lei para 99 por cento das famílias brasileiras, para os produtores brasileiros e para as pessoas que criam empregos”.

A desflorestação no Brasil começou a aumentar fortemente em 2013, mas atingiu o seu pico em 2019, já durante a presidência de Bolsonaro. O chefe de Estado tem sido criticado pelos seus comentários considerados ofensivos sobre os povos indígenas e por facilitar ataques ambientais na Amazónia, defendendo mineiros e agricultores que lá ocupam terras.

Recentemente, Bolsonaro afirmou que a maior reserva indígena do país, Yanomami, era demasiado grande e atacou agências ambientalistas por multarem pessoas por crimes contra o ambiente.

Em meados de abril, o Governo brasileiro atribuiu o aumento de 51 por cento da desflorestação da Amazónia no primeiro trimestre deste ano à luta contra a pandemia de Covid-19. O vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, que chefia o Conselho Nacional da Amazónia, acusou os madeireiros ilegais de se aproveitarem da crise pandémica com que o Governo está a lidar para aumentarem as suas atividades.
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