Manual do Brexit

por Raquel Ramalho Lopes - RTP
Sara Piteira - RTP

São ainda muitas as incertezas. Muitos pontos de interrogação numa longa e dura negociação que teve origem no dia em que os britânicos decidiram, em referendo, abandonar a União Europeia. Neste Manual do Brexit, explicamos em 12 pontos o que está em causa e os cenários que se colocam perante um puzzle político e económico com peças que teimam em não encaixar. A votação do acordo em Londres está marcada para terça-feira, dia 15 de janeiro.

O Reino Unido vive em dúvida sobre o nível de adesão à União Europeia praticamente desde que, há 46 anos, integrou o grupo do primeiro alargamento.

Resultado da união política de quatro países - Inglaterra, Irlanda do Norte, Escócia e País de Gales -, o Reino Unido sempre procurou um estatuto especial dentro da Europa: negociou uma cláusula de não adesão à moeda única, também não participa no espaço Schengen e conseguiu descontos nas contribuições para o orçamento comunitário.

Londres está a dias de um eventual abandono da União Europeia, mas ainda ninguém sabe o desfecho.
1. O que significa Brexit?
A expressão “Brexit” reúne os termos “British Exit”. É utilizada para designar a saída do Reino Unido da União Europeia, tal como “Grexit” designava o eventual abandono da Zona Euro da Grécia ou “Frexit”, a saída da França aventada por Marine Le Pen. 
Yves Herman - Reuters
2. Qual a data definida?
29 de março de 2019.

A primeira-ministra Theresa May acionou o Artigo 50 do Tratado de Lisboa (2009) na sequência dos resultados do referendo de 23 de junho de 2016, em que 51,9 por cento dos participantes (17,4 milhões de eleitores) decidiram que o Reino Unido deve abandonar a União Europeia. A taxa de participação foi de 72,2 por cento.



O Tratado de Lisboa define que qualquer Estado-membro “pode decidir, em conformidade com as respetivas normas constitucionais, retirar-se da União”, devendo para o efeito notificar o Conselho Europeu e negociar um acordo de saída para garantir as futuras relações com a União.

De acordo com o ponto 3 do tratado, se não for alcançado um acordo quanto às condições de retirada ordenada “os Tratados deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa” dois anos após a notificação, “a menos que o Conselho Europeu, com o acordo do Estado-Membro em causa, decida, por unanimidade, prorrogar esse prazo”.

3. O que acontece após 29 de março?

A partir de 29 de março 2019 e até 31 de dezembro 2020, o Reino Unido entra num período de transição, que o Governo britânico designa de “implementação”.

O Reino Unido estará obrigado a cumprir todas as regras da União Europeia, mas perderá a sua participação nas instituições e a sede de várias agências terá de ser deslocalizada para outros países.

Esta decisão implica, por exemplo, a relocalização da Agência Europeia do Medicamento de Londres para a Amesterdão, com os seus quase 900 funcionários, da Autoridade Bancária Europeia para Paris e a saída dos 73 eurodeputados britânicos do Parlamento Europeu.

Nos termos do acordo técnico, o período de transição pode ser prolongado mas apenas por uma vez e por um ou dois anos, no máximo até ao final de 2022. O prolongamento tem de ficar decidido pelas partes até 1 de julho de 2020.

No entanto, a primeira-ministra britânica sempre disse que quer tudo resolvido antes das eleições gerais de maio de 2022.
Dylan Martinez - Reuters

Conforme refere a declaração política que estabelece as bases do relacionamento entre os dois blocos após o “Brexit”, o Reino Unido e a União Europeia vão negociar acordos para dar forma legal à futura relação entre os dois blocos em área tão diversas como o comércio, a mobilidade ou a política externa, defesa ou segurança.

4. Quanto vai custar ao Reino Unido?
O Acordo de Saída não refere valores, mas o Reino Unido deverá pagar uma compensação financeira de 39 mil milhões de libras (44 mil milhões de euros) ao longo de vários anos.
Vincent Kessler - Reuters

Parte desta verba será paga sob a forma de contribuições financeiras a fazer durante o período de transição e, caso esta fase seja alargada, o contributo financeiro também poderá aumentar.

O contributo do Reino Unido para o orçamento dos 28 Estados-membros este ano é de 10,8 mil milhões de libras.
5. Qual o impacto económico do Brexit no Reino Unido?


Os números acima foram publicados num documento do Ministério do Tesouro que faz uma análise a longo prazo do impacto económico do Brexit. O cenário que revela menor impacto tem por base as propostas mencionadas no “Plano Chequers”, proposto por Theresa May em julho mas rejeitado pela Comissão Europeia. O modelo do Acordo de Saída não foi testado.


Considerando que existe uma grande incerteza, o estudo acima referido, tal como muitos outros, projeta o impacto económico para vários cenários:

a) o Reino Unido continua membro do Espaço Económico Europeu;
b) o Reino Unido assina um Acordo de Livre Comércio com a União Europeia;
c) o Reino Unido e a União Europeia comercializam nos moldes da Organização Mundial de Comércio (OMC).

De acordo com os estudos feitos por entidades distintas, a economia britânica perde em todos os cenários, dependendo a quebra do futuro modelo de comércio adotado entre o Reino Unido e a União Europeia.

Um estudo do National Institute of Economical and Social Research estima que o Brexit, nos moldes definidos no Acordo de Theresa May, poderá custar 900 euros por ano a cada britânico.

A agência de notação financeira Fitch avisou que o abandono da União Europeia sem um acordo poderá lançar o Reino Unido numa recessão. Os analistas dizem que o corte no rating do crédito do Reino Unido no início do próximo ano é quase certo. Após o referendo de 2016, a Fitch reduziu a classificação de AA+ para AA.

O governador do Banco de Inglaterra afirma que o Reino Unido não está preparado para uma saída sem acordo ou “período de transição”, com uma depreciação da libra de até 25 por cento, um aumento da inflação para 6, por cento e uma queda no Produto Interno Bruto (PIB) de oito por cento acima do nível atual até 2023.

6. Qual o impacto económico do Brexit nos Estados-membros?
A economia dos demais 27 Estados-membros deverá retrair-se entre 0,6 e 1,5 por cento até 2030, de acordo com o relatório publicado em julho pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Irlanda, Holanda e Bélgica são os países mais afetados.

A Irlanda é o país mais afetado devido às profundas e amplas relações económicas com o Reino Unido. De acordo com o FMI, a economia irlandesa pode cair entre 2,5 e 4 por cento até 2030, correndo o risco de desaparecimento de 50 mil empregos.

Na Holanda, o Tribunal de Contas estima que uma saída sem acordo vai implicar 2,3 mil milhões de euros em custos diretos aos Países Baixos até 2023.

A Bélgica é outro dos países geograficamente mais próximos do Reino Unido, mantendo com a ilha relações económicas significativas. O Reino Unido é o quarto destino das exportações da região da Flandres, que ascendem a 27,66 mil milhões de euros. O setor dos transportes será seriamente afetado.




7. Qual o impacto do Brexit nas exportações portuguesas?
O PIB poderá cair entre 0,5 por cento e 1 por cento. O investimento direto do Reino Unido em Portugal pode descer entre 0,5 e 1,9 por cento. Já as exportações podem registar uma queda entre 15 e 26 por cento.

O Reino Unido é o quarto mercado das exportações portuguesas de bens – a seguir a Espanha, França e Alemanha - e o primeiro das exportações de serviços.


O estudo “Brexit. As consequências para a economia e as empresas portuguesas”, realizado a pedido da Confederação Empresarial de Portugal e apresentado no final de outubro, refere que os setores da informática e das componentes automóveis são os mais sensíveis e a Região Norte é aquela que poderá sofrer mais danos.

Todavia, segundo Augusto Mateus, antigo ministro da Economia e um dos autores do estudo, a alteração de relacionamento entre o Reino Unido e Portugal pode também “abrir oportunidades à economia e sociedade portuguesas, seja ao nível das cadeias de valor globais, seja ao nível das decisões de investimento do mundo que não é europeu, seja ao nível de Portugal poder substituir outros no comércio com o Reino Unido e substituir o Reino Unido no comércio com outros”.

8. Se o Reino Unido perde tanto, por que razão quer sair?
Toby Melville - Reuters

Os defensores do Brexit têm a intenção superar os custos de curto prazo através da construção de vantagens de longo prazo, que um novo posicionamento na globalização e nas dinâmicas de comércio, investimento e produção podem permitir.

Para tal, o Reino Unido irá fazer acordos com os EUA, Canadá e Japão, revalorizar a Commonwealth e negociar “um modelo de regulação económica e social bem mais favorável ao mundo dos negócios ao nível dos custos, das regulamentações e das restrições de concorrência”.

“Nesta lógica o Brexit seria não um processo de relativo isolamento nacionalista, mas, ao contrário, um caminho de afirmação do Reino Unido na globalização (sem a mediação da participação na União Europeia)”, referem os autores do estudo Brexit. As consequências para a economia e empresas portuguesas.

9. É possível reverter o Brexit?

Sim. O Tribunal Europeu de Justiça decidiu que o Reino Unido pode revogar unilateralmente a aplicação do Artigo 50 do Tratado de Lisboa, que enquadra os procedimentos de saída de um Estado-membro da União Europeia.

10. Qual o principal problema apontado pelos deputados no Reino Unido?

O principal foco de desentendimento é a solução encontrada para evitar uma fronteira física entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, que permanece Estado-membro da União Europeia.

O mecanismo de salvaguarda – também designado por backstop – foi criado com o objetivo de garantir que o Acordo de Sexta-Feira Santa, assinado em 1998 e que impede uma fronteira entre as duas Irlandas, continue em vigor. 

Se no final do período de transição não houver acordo bilateral para o comércio, aplicar-se-á o mecanismo de salvaguarda, considerado como “uma rede de segurança” ou “apólice de seguro”, que mantém a Irlanda do Norte numa união aduaneira. Este estatuto especial para a Irlanda do Norte gera receios pela integridade territorial do Reino Unido.

O facto de o Acordo de Saída não referir um prazo para a permanência no “território único aduaneiro” é outra das questões criticadas, mas o Governo irlandês não quer “reabrir nenhum aspeto do acordo sem reabrir todos os outros”. Além disso, o Reino Unido não pode acionar o mecanismo de salvaguarda de forma independente; sendo obrigado a tomar a decisão em conjunto com a União Europeia.

O Reino Unido pode evitar a aplicação deste mecanismo através do prolongamento do período de transição. A intenção deverá ser comunicada até julho de 2020 e manteria o comércio com a União Europeia nos moldes atuais, bem como sob todas as restantes regras, o que não agrada aos defensores do Brexit.

11. Quais as dificuldades que Theresa May enfrenta?
Reuters

Com 650 deputados, o Parlamento britânico tem-se mostrado muito crítico do mecanismo de salvaguarda da fronteira na ilha da Irlanda.

A primeira-ministra conta com a oposição de deputados dentro do próprio Partido Conservador e dos dez deputados do Partido Democrático Unionista, da Irlanda do Norte, aliado do Governo conservador minoritário.

Liderado por Jeremy Corbyn, o Partido Trabalhista anunciou que vai votar contra um Acordo de Saída que diz ser “mal atamancado”. Também o Partido Nacional Escocês e deputados Liberais Democratas contestaram o Acordo.

12. O que acontece se o acordo for rejeitado na Câmara dos Comuns?
  • O Reino Unido abandona o bloco europeu sem acordo;
  • É realizada uma segunda votação no Parlamento;
  • É convocado um novo referendo (Câmara dos Comuns deve aprovar);
  • São convocadas eleições gerais antecipadas na sequência de uma moção de censura (a solução preferida pelo líder do Partido Trabalhista);
  • Os deputados britânicos têm insistido na renegociação da solução para a fronteira da Irlanda do Norte, uma proposta que, até ao momento, a União Europeia sempre rejeitou.
Algumas opções acima referidas implicariam o adiamento do Brexit, a fim de dar tempo para convocar novas eleições ou um referendo.
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