O mundo em casa

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP
Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP DR

A pandemia domina a política internacional. Com a provável excepção da Coreia do Norte, não haverá um país que não tenha a Covid-19 na primeira página dos seus jornais. Com a periodicidade possível e sem sair de casa, propomo-nos passar uma vista de olhos pelo que se vai passando por outras paragens.

Espanha
Durante muitos anos, o sistema político e o sistema de partidos espanhóis revelaram grande estabilidade. O modelo de democratização por via de uma transição pactuada era tido como um exemplo, pela liberalização política e pela conversão de Espanha numa das principais potências económicas europeias.

As consequências da crise de 2008 foram particularmente violentas para o país, com um aumento descomunal do desemprego e com a necessidade de um resgate de 100.000 milhões de euros aos bancos públicos regionais. A partir desse momento, Espanha não conseguiu voltar a erguer-se como potência regional, com a crise a provocar uma fragmentação do sistema de partidos e a pôr fim a décadas de governos estáveis dominados por maiorias (absolutas ou relativas robustas) de um só partido.

Em paralelo, o nacionalismo catalão lançou um dos mais sérios desafios à integridade territorial do país, levando o Estado a empenhar a maioria dos seus esforços na resposta à ameaça institucional. A forma como o novo coronavírus atingiu Espanha e as dificuldades que o governo e as comunidades autónomas estão a apresentar para reagir poderão conduzir ao corolário desta década de crise.

Ao contrário do sistema político italiano, que vive num equilíbrio instável desde o final da Segunda Guerra Mundial, os espanhóis habituaram-se a um certo grau de estabilidade. Porém, as suas instituições (tribunais, coroa, líderes partidários) parecem não compreender as transformações em curso e insistem a actuar dentro de uma lógica conservadora e anacrónica.

A crise de saúde pública, a repentina travagem da economia nacional e a brutal escalada no desemprego poderão servir de combustível a uma das mais graves convulsões políticas numa potência europeia ocidental no pós-Segunda Guerra Mundial.
Hungria
Na semana passada, falávamos das investidas de Victor Orban contra as instituições democráticas que ainda vão subsistindo na Hungria. No início desta semana, o primeiro-ministro húngaro obteve uma carta branca do parlamento para governar por decreto e para instituir mecanismos de censura. Conhecendo o seu padrão de actuação não será de estranhar que venha a utilizar estes instrumentos para muito mais do que para a gestão da crise pandémica.

Entretanto, a União Europeia continua a não assumir uma posição efectiva em relação aos abusos de Budapeste. A conjugação da fractura entre o Norte e Sul com a percepção de ineficácia na exigência de cumprimento de direitos fundamentais pode vir a ser fatal para um projecto que dá sinais evidentes de ter perdido as referências.
América Latina

O Brasil continua a ser a excepção na América Latina. Quase todos os países da região optaram por medidas restritivas, coordenadas entre as diferentes autoridades territoriais nacionais (centrais, regionais e locais). Aparentemente, estas medidas estão a produzir resultados, com a progressão dos contágios registados a evoluir mais lentamente em comparação com os Estados Unidos ou com a Europa.

A imagem que o Brasil projecta, entretanto, é de total descoordenação. Depois de um primeiro momento a negar a realidade, Jair Bolsonaro está agora enredado em disputas internas com os governos estaduais, com o presidente da Câmara dos Deputados e (pasme-se) com o próprio ministro da Saúde, podendo acabar tudo nos tribunais.

O Brasil parece hoje um corpo estranho e sem qualquer capacidade de liderança no seu contexto regional.
Filipinas
À medida que as semanas passam, confirma-se a ideia de que a generalidade dos Estados reforçou os seus poderes para combater a ameaça à saúde pública. Alguns respeitaram os princípios democráticos, outros, como no caso de Orban, instrumentalizaram-nos para acumular poder.

O exemplo das Filipinas é ainda mais radical do que o húngaro, com um chefe de Estado democraticamente eleito, Rodrigo Duterte, a ameaçar a população com execuções sumárias (autorização das forças policiais para disparar) em caso de incumprimento do recolher obrigatório.

A erosão da democracia e dos direitos dos cidadãos poderá mesmo ser a terceira grande crise que teremos que enfrentar depois da pandemia e da recessão.

Sugestão


O papel que a China irá desempenhar no mundo quando a poeira da pandemia assentar é actualmente o tema de eleição dos especialistas em Relações Internacionais. A Foreign Affairs publicou hoje um artigo de Minxin Pei, professor no Claremont McKenna College, que procura lançar algumas luzes sobre as fragilidades da liderança chinesa.

Bom fim-de-semana.

Nota: o autor escreve respeitando a ortografia pré-acordo ortográfico.
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