O mundo em casa

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP
Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP DR

Na passada sexta-feira, o governo de Jair Bolsonaro sofreu um golpe de difícil recuperação. O tiro no porta-aviões não foi dado por Lula da Silva, pelo Partido dos Trabalhadores (PT) ou por qualquer outro movimento da oposição. Bem pelo contrário.

Em plena pandemia da Covid-19, com hospitais a colapsar, centenas de mortos por dia e a assimetria entre estados da federação a céu aberto, Sérgio Moro, o antigo juiz que liderou a “Operação Lava-Jato”, demitiu-se com estrondo do cargo de ministro da Justiça e da Segurança Pública.

Moro é, para o bem e para o mal, uma das figuras mais marcantes dos últimos cinco anos da vida pública brasileira. A partir do seu cargo de juiz de primeira instância em Curitiba (estado do Paraná), facilitou e incentivou (confundindo muitas vezes os papeis de juiz, acusador e polícia) uma operação policial que abalou as classes política e empresarial do país.

A sua actuação só foi possível num sistema como o brasileiro, em que o juiz de primeira instância também conduz a instrução, o que permite que investigação, acusação e julgamento se confundam.

O facto de o Brasil viver, por esse período, o início de uma crise económica e de haver uma percepção de corrupção generalizada gerou a atmosfera perfeita para impulsionar a imagem de uma figura que surgia como impoluta e em claro contraste com a classe política. Moro conseguiu deter empresários e políticos e teve como principais trofeus a condenação de Lula da Silva e, indirectamente, a queda de Dilma Rousseff.

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil eleito em Outubro de 2018, é uma figura completamente distinta. Antigo militar e deputado de segunda linha, mais conhecido pela truculência no discurso do que pela actividade legislativa, estava no sítio certo no momento em que a figura que liderava todas as sondagens (Lula) estava a cumprir pena e com os seus direitos caçados por prática de crimes de corrupção.

Dois anos antes da sua chegada ao Planalto (sede da presidência), Bolsonaro ganhara alguma projecção, dentro e fora do Brasil, pelas palavras que pronunciara quando emitiu o seu voto favorável ao processo de destituição de Dilma. Sem qualquer hesitação, evocou a memória do militar que torturara a então presidente nos seus tempos de oposição à ditadura.

Os caminhos de Moro e Bolsonaro cruzaram-se num Brasil em crise e dividido em facções radicalizadas. A destituição de Dilma, a “Operação Lava-Jato” e o processo judicial contra Lula, devidamente enquadrados pela crise económica, marcaram os dois anos que antecedem a eleição presidencial.

O PT estava ferido por uma coligação heterogénea. Grupos e personalidades do centro à extrema-direita, generosamente patrocinados por empresários, estavam dispostos a votar em qualquer figura, fosse ela qual fosse, que se apusesse ao candidato nomeado por Lula, fosse ele qual fosse. Nesse momento, Sérgio Moro é o denominador comum a toda esta gente, mas não avança. O centro-direita institucional (PSDB) apresenta Gerlado Alckmin, governador de São Paulo, que se revela um candidato anacrónico, desajustado aos tempos que se estão a viver.

Sem acesso a tempos de antena tradicionais, mas com recursos financeiros disponíveis e com uma noção muito clara de como se pode fazer uma campanha nas redes sociais (sobretudo Whatsapp), a extrema-direita vence a primeira-volta das presidenciais. O embate entre Fernando Haddad, candidato de Lula, e Jair Bolsonaro, na segunda-volta, é o terreno perfeito para as notícias falsas e para a simplificação do discurso: ou se está a favor ou contra a corrupção.

Jair Bolsonaro vence as eleições e a sua escolha para ministro da Justiça e Segurança Pública recai sobre Sérgio Moro, dando corpo à coligação informal que criara o ambiente favorável à sua eleição. Durante o ano e meio que durou a relação, Moro foi o avalista do presidente perante o centro e a direita moderada. O seu capital amortecia e travava críticas mesmo em sectores que já não tinham dúvidas sobre a mediocridade de Bolsonaro.

A crise de saúde pública em curso veio separar as águas. A forma irresponsável com que o presidente brasileiro tem gerido a resposta à pandemia levou à saída do ministro da Saúde, Luiz Mandetta, e teve como consequência a diminuição da base de apoio. Moro assumiu que não estava disposto a alienar o seu capital (“tenho que zelar pelo meu currículo”) e a tentativa de controlo da Polícia Federal, que investiga dois dos filhos do presidente, terá sido a gota de água.

Moro saiu com estrondo. Bolsonaro, para lá da extrema-direita, já só conta com Paulo Guedes, ministro da Economia, e com os militares. Tenta agora voltar-se para o Congresso para negociar com o “centrão”, conjunto de partidos políticos sem ideologia que domina a actividade parlamentar. Curiosamente, ou talvez não, militam e lideram essas formações vários suspeitos, investigado e condenados pela Lava-Jato que se sentiam ameaçados pelo antigo juiz.

Entretanto, Moro está livre. Não podendo regressar à magistratura, a tentação de começar a construir uma alternativa de centro-direita ao actual presidente será grande. Porém, ainda muita coisa pode acontecer neste mandato. Mais do que pela prática de crimes, os processos de destituição dependem da economia e da popularidade dos governos.

Está ainda por definir o papel dos militares, único pilar institucional ao lado de Bolsonaro, que poderá ser tentado a assumir uma posição de destaque, caso a manutenção do presidente se torne insustentável.

Nota: o autor escreve respeitando a ortografia pré-acordo ortográfico.
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