O mundo em casa

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP
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Na semana passada, assinalaram-se os setenta e cinco anos da rendição incondicional da Alemanha nazi. A Europa de hoje poderá não ser filha desse momento, mas não deixa de ser sua neta. O actual quadro europeu é descendente em primeiro grau do fim da Guerra Fria e de uma expansão do modelo ocidental para Leste, mas foi em 1945 que se começou a redefinir o relacionamento entre os Estados do continente.

Nesse ano, nasce a Organização das Nações Unidas e o princípio da auto-determinação nacional ganha força política efectiva. Esta transformação e a destruição material e humana provocada pela guerra determinam a progressiva evolução das potências coloniais europeias para Estados exclusivamente centrados nos seus problemas continentais.

A emergência de duas novas superpotências globais, os Estados Unidos e a União Soviética, contribuem com igual eficácia para o recuo da Europa para uma dimensão regional. O novo quadro bipolar tutelou o mundo durante quase cinquenta anos e, se a Europa de Leste permaneceu sob ocupação de facto dos soviéticos (ou russos), a Europa Ocidental foi estimulada a desenvolver mecanismos alternativos de relacionamento.

Os norte-americanos, mais afastados geograficamente do que os russos e sem a mesma possibilidade de manter um grande contingente militar na Europa, optaram pela relegitimação da Alemanha sob a forma de uma República Federal que, para sobreviver, dependia tanto do peso económico como da ausência de expressão militar. Os franceses, hesitantes, aceitaram, preferindo uma Alemanha com soberania limitada a uma situação de indefinição incontrolada.

A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), a Comunidade Económica Europeia (CEE) e a União Europeia (UE) são as principais expressões da reinvenção de uma Europa cujas lideranças, com a honrosa excepção de Charles De Gaulle, passaram o testemunho do ascendente militar aos Estados Unidos. Quando a Guerra Fria terminou, a Alemanha unificada optou por manter o compromisso com os seus parceiros e não cedeu a tentações de isolamento ou rearmamento, o que foi revelador de uma mudança no paradigma de poder.

O fim do Bloco de Leste coincide com o aparecimento da UE e com a institucionalização da cooperação política na forma de cidadania europeia, Política Externa e de Segurança Comum e Cooperação em Justiça e Assuntos Internos. Por essa altura, a integração económica também avança em direcção à moeda única e ao mercado interno.

Curiosamente, ou talvez não, a União foi sempre um alvo preferencial de movimentos radicais de esquerda e de direita. Tem sido a besta negra de comunistas, que vêem no projecto a retracção do Estado na economia; de nacionalistas, que não suportam o fim das moedas nacionais e das fronteiras internas; e de ultra-liberais, que entendem a regulação como umas algemas postas na “mão invisível”.

A crise das dívidas soberanas, a partir de 2010, com o ascendente da dimensão financeira sobre as dimensões económica e política não facilitam a defesa da Europa. A Alemanha, cuja margem de manobra crescera discretamente à sombra da moeda única, passou a exercer o seu poder de forma aberta e declarada, pondo em causa os equilíbrios em que assentava o projecto desde os anos 50.

Quando as feridas da UE começavam a sarar, graças à estabilidade da economia e à consolidação da regulação de um Banco Central Europeu supranacional, surgiu a hecatombe na forma de pandemia. É inegável a sensação de inutilidade dos esforços.

Não nos enganemos. Quando a poeira assentar e a opinião pública começar a exigir mais dos seus governos, a crise económica poderá dar lugar às crises políticas e o anti-europeismo, chame-se ele Frente Nacional, Liga ou Alternativa Alemã, estará à espera para actuar sobre os escombros da maior recessão de que há memória.

Cabe à Europa, por uma vez, saber gerir a própria imagem e criar empatia com os seus cidadãos, explicar-se, comunicar os seus sucessos e demonstrar que sem o seu modelo social e com as receitas dos que a combatem tudo estaria ainda pior. E não é difícil explicar tudo isto: basta pôr os cidadãos a olhar para os Estados Unidos, a grande potência que resta da velha ordem, ou para o Brasil, o maior país da América Latina. Esta seria uma justa homenagem aos setenta e cinco anos de paz.

(Ortografia pré-acordo)
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