Visão Global 2017: Bruno Oliveira Martins

por Bruno Oliveira Martins - Universidade de Malmö e Peace Research Institute Oslo
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Personalidade do ano: Donald Trump
 Donald Trump, o 45º presidente da história dos Estados Unidos, marca o ano político de 2017 como mais nenhuma outra individualidade. E marca-o por ser uma figura altamente imprevisível e com grande capacidade desestabilizadora a nível interno e a nível internacional.
 
Ao nível da política internacional, são três as principais marcas do seu primeiro ano de mandato. A primeira é o anúncio da intenção da retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris para as Alterações Climáticas. Esta decisão, gerada por um cepticismo quanto às alterações climáticas e confirmando uma política económica populista e - pelo menos no discurso - ultranacionalista, indica uma inclinação para um isolacionismo internacional por parte de Washington. A segunda marca é o agravamento das tensões com a Coreia do Norte, numa relação em que as provocações do regime de Pyongyang, crescentemente ameaçadoras, têm sido geridas via Twitter com reacções epidérmicas, com trocas de insultos de uma infantilidade admirável, e sem nenhum progresso diplomático. A terceira marca é a crescente hostilidade para com o Irão e a suspensão do acordo nuclear assinado durante o mandato do presidente Obama.
 
No entanto, aquilo que faz de Donald Trump a personalidade internacional do ano vai bem para além destas marcas na política externa norte-americana. Mais do que medidas concretas ou decisões em matérias específicas, o que torna Trump incomparável com qualquer outro líder norte-americano é a sua total ausência de sentido de estado, um entendimento da “verdade” enquanto algo instrumental e instrumentalizável, e uma insegurança alarmante, materializada em constantes buscas por validação externa às suas decisões.
 
Mais importante ainda, a personalidade e a actuação de Trump amplificam várias tendências problemáticas na sociedade norte-americana, tendências essas que sempre existiram, mas que encontram, hoje, uma força legitimadora individualizada na figura do presidente. Aquilo falo sobretudo de racismo e xenofobia (em relação a negros, americanos indígenas, pessoas oriundas da América Latina), de uma islamofobia exacerbada, de um machismo explícito, e de um desprezo pelo conhecimento científico e pela verdade factual. Cada uma destas tendências tem potencial para desestabilizar o país e gerar conflitos sociais de grandes proporções.
 
Existe um claro perigo de alastramento além-fronteiras deste efeito legitimador, ao mesmo tempo que a combinação de alguns dos traços de personalidade de Donald Trump (insegurança, egocentrismo, falta de capacidade empática) geram fundadas dúvidas acerca da capacidade da sua Administração para gerir crises internacionais – e, como se sabe, não faltam interessados em explorar fragilidades em Washington. Nesta nova fase de crescente instabilidade internacional, existe uma forte convicção de que a actual Administração em Washington, se provocada, reagirá de forma veemente, seja no caso de um ataque terrorista em solo norte-americano ou mesmo de um ataque de outra natureza mais convencional. Nesse cenário, nada do que nos foi possível observar ao longo destes penosos doze meses de mandato nos transmite confiança e segurança.
Acontecimento do ano: Guerra no Iémen
Ao longo de 2017, enquanto grande parte da atenção internacional se focou nas tensões entre Washington e Pyongyang, na guerra híbrida que parte de Moscovo para vários pontos do globo, ou no desmoronar do Estado Islâmico no Iraque e na Síria, a guerra no Iémen tornou-se na maior catástrofe humanitária das últimas décadas sem que muitos de tal se apercebessem. Mais do que o número das vítimas directas do conflito (acima de 10.000), é a pobreza extrema e a fome da população, o maior surto de cólera da era moderna, e, no fundo, a irracionalidade e a desnecessidade do conflito que nos chocam. Por tudo isto, pela sua dimensão humanitária, e pela sua importância no xadrez regional do Médio Oriente, a guerra no Iémen é o mais importante acontecimento do ano.
 
A actual guerra do Iémen é o resultado de uma sequência complexa de acontecimentos difícil de explicar em poucas palavras, mas, em suma, desde 2015 vem opondo duas facções principais, cada uma das quais actualmente com um governo numa parte diferente do país: uma facção corresponde ao governo de Abdrabbuh Mansour Hadi, no poder entre 2012 e 2015; a outra é o chamado movimento Houthi, que pretende estabelecer o domínio das tradições zaydi no país, por oposição a um sunismo fundamentalista apoiado pela Arábia Saudita. Ainda que as tensões entre Houthis e o governo de Hadi estivessem a crescer desde 2012, foi apenas em Março de 2015, com o início dos bombardeamentos da Arábia Saudita aos Houthis, que o conflito começou a ganhar a dimensão apocalíptica que hoje apresenta.
 
A intervenção da Arábia Saudita vai muito além dos bombardeamentos aéreos. Desde há muitos meses mantém um bloqueio terrestre e marítimo ao território que colocou a população iemenita perante o maior surto de fome em muitos anos a nível mundial. Antes da guerra, o Iémen, de longe o país mais pobre no Médio Oriente, importava cerca de 90% dos produtos alimentares consumidos no país. Com o bloqueio saudita, os alimentos não conseguem entrar e a subnutrição da população atingiu números impressionantes, tendo a ONU referido que, se o bloqueio não for levantado imediatamente, assistiremos à maior fome das últimas décadas com milhões de vítimas. Enquanto isso, uma gritante falta de água potável gerou o maior surto de cólera da era moderna, tendo já originado mais de 2000 mortes, e com cerca de um milhão de pessoas em risco de contrair a doença nas próximas semanas.
 
O principal motivo para a intervenção saudita é o facto de que os Houthis são apoiados pelo Irão, o rival regional da Arábia Saudita. Por este motivo, a guerra no Iémen é claramente aquilo que, nos estudos de segurança, se chama uma guerra por procuração, em que Teerão e Riad usam a arena iemenita para lutar pela hegemonia regional sem se confrontar directamente. E, neste contexto, as maiores potências ocidentais, sobretudo os Estados Unidos e o Reino Unido, tomaram o partido dos sauditas, vendendo armas, oferecendo respaldo diplomático e ignorando a catástrofe humanitária, ajudando a tornar este conflito a maior crise humanitária do século XXI.
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