Visão Global 2017: Germano Almeida

por Germano Almeida - Jornalista, Escritor
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Personalidade do ano: Xi Jinping
Se Vladimir Putin foi o ás de trunfo em 2016, pela forma como conseguiu influenciar a escolha presidencial dos americanos em detrimento de Hillary Clinton e a favor de Donald Trump, 2017 terá sido, verdadeiramente, o “primeiro ano chinês”.
A ascensão da China, mesmo que por vezes silenciosa, começa a ser a história fundamental das relações internacionais, numa tendência acelerada pelo retraimento americano.

Esse recuo já tinha começado nos anos Obama mas tem sido agravado pela atual Administração Trump, que segue o lema “America First”.

O fechamento trumpiano tem começado a colocar os EUA de fora das grandes decisões internacionais (saída do Acordo de Paris, oposição ao TPP e ao avanço do TTIP, hostilidade para com a ONU e a NATO, embora com posições ambíguas).

Numa “longa estratégia”, focada em décadas e não na espuma dos dias, a China está a galgar terreno: reduz diferenças no PIB e mesmo no poderio militar, reforça a segunda posição no clube das maiores potências do mundo, e começa a preparar a ultrapassagem aos EUA. Não será para já, nem sequer nesta década. Mas provavelmente já será no tempo das vidas da maior parte das pessoas que conhecemos.

Xi Jinping é o líder chinês que melhor corporiza esta “longa caminhada” rumo à liderança mundial. Tem sabido lidar como mestria a ambiguidade hostil do atual presidente americano (que fez campanha numa base agressiva em relação à política comercial da China) e está a reforçar a credibilidade internacional da liderança de Pequim.

Não entra num tipo de conversa durona que alguns líderes quiseram adotar com Trump (Kim Jong-Un, Malcolm Turnbull, Justin Trudeau, mesmo Angela Merkel) e até recebeu o presidente americano em Pequim, a 9 de novembro, com pompa e circunstância.

Xi Jinping é, desde outubro, o primeiro líder chinês desde Mao Tse Tung a ver inscrito na constituição da China o seu pensamento como linha oficial chinesa.

Mereceu voto unânime do Congresso do Partido Comunista Chinês no sentido de aprovar o seu "Pensamento do Socialismo de Carácter Chinês para uma Nova Era".

Desde 2012, tem vindo a reforçar o seu poder interno e o seu prestígio interno.

Na Rússia vemos Putin a interferir nas eleições americanas e a compensar problemas económicos internos com ações hostis externas com os seus vizinhos. E a continuar a ter práticas autoritárias para reprimir esboços de oposição interna e focos de ameaças externas (apoio à Síria de Assad).

Nos EUA vemos um presidente desprestigiado e com fraco apoio externo, sem capacidade de governar e a ter como única “estratégia” de política externa a opção de rasgar grandes acordos multilaterais e promover negociações bilaterais com o único objetivo de retirar lucro aos EUA.

Na China, com menos buzz mediático mas maior estratégia a longo prazo, um líder pouco conhecido para muitos tem aumentado a influência do seu país na região e posicionado os chineses como atores cada vez mais respeitados e influentes na Europa, em África e até na América.

Xi Jinping é a escolha improvável, mas talvez inevitável, para Figura Internacional do Ano 2017.
Acontecimento do ano: Eleição presidencial de Emmanuel Macron
Dois acontecimentos inesperados, e profundamente perturbadores, de 2016 - o Brexit e a eleição de Donald Trump - pareciam anunciar um ano marcado pela exploração do medo e pela assunção das propostas políticas autoritárias, nacionalistas e unilateralistas.

Muitos garantiam que Marine Le Pen passava a ser a grande favorita das eleições presidenciais francesas, agendadas para maio. Uma eventual eleição para o Eliseu da líder da extrema-direita francesa teria consequências potencialmente ainda maiores do que a saída do Reino Unido da UE e que a eleição do primeiro não político ou chefe militar para a Casa Branca.

Marine Presidente seria o confirmar da viragem dos eleitorados das grandes democracias ocidentais, de uma preferência liberal e democrática para opções perigosamente demagógicas e nacionalistas.

Seria, muito provavelmente, o fim do projeto europeu – construído a muito custo e graças a uma feliz junção de necessidade, ambição e arrojo – e um rombo muito significativo na ordem internacional liberal, globalista e multilateralista.

Em tempos de sentenças apressadas, ditadas pela perceção mediática e mais imediata e não pela análise objetiva e minimamente aprofundada dos factos, não se anteviu o essencial: tanto o Brexit como Trump foram ocorrências inesperadas, mas nos dois casos não refletiram maiorias expressivas. Foram ambas, na verdade, uma espécie de “improbabilidade estatística”. Muito mais que reflexos de sentimentos profundos e transversais do eleitorado britânico e americano.

O Brexit não foi, sequer, uma disputa eleitoral clássica: foi um referendo. Trump ganhou com menos três milhões de votos que a adversária e conseguiu ser eleito com 46% - algo que, no sistema eleitoral presidencialista francês era simplesmente ridículo.

Eleições são política mas são, também, matemática. E bastava perder algum tempo nessa parte numérica para se perceber que Marine Le Pen não tinha qualquer hipótese de ser eleita Presidente da França. Teria, no limite, algumas chances de ser a mais votada à primeira volta.

Mas havia, mesmo assim, alguns cenários choque para quem ainda gosta das democracias liberais que marcaram o período de «Longa Paz» que se viveu nas últimas seis décadas na Europa e nos EUA.

O risco maior seria uma disputa à segunda volta entre os dois extremos: Marine à direita, Melenchon pela esquerda radical, ambos com uma agenda avessa ao multilateralismo e crítica dos grandes acordos comerciais.

O ar do tempo não aconselharia a um discurso moderado, pró-europeísta e multilateralista. Mas foi com essa plataforma que Emmanuel Macron obteve uma enorme vitória (64%), posteriormente reforçadas, nas semanas seguintes, com a maioria absoluta do seu En Marche, nas legislativas.

Muitos veem Macron como um produto fabricado à pressa pelos “grandes interesses” para compensar a falência dos candidatos dos partidos clássicos (Hollande nem ousou tentar a reeleição, Hamon teve votação ridícula, Fillon não recuperou a tempo dos escândalos).

O facto é que o jovem “under 40” que chegou a ser um dos preferidos de François Hollande apareceu com uma agenda que juntava os temas certos no plano externo (discurso integrador e pró-instituições internacionais, numa espécie de anti-Trump a falar francês) e uma visão reformista e nada comprometida com as pressões dos sindicatos no plano interno, fiscal e laboral.

Dá para conciliar, a ponto de não cair numa nova desgraça presidencial do estilo “4% de aprovação” (foi o que aconteceu a Hollande)? É cedo para saber.

Uma coisa já conseguimos afirmar: Macron provou, e não era fácil, que é possível ter um discurso crítico da forma como os partidos tradicionais se têm comportado sem cair numa agenda demagógica, populista e autoritária. E soube interpretar o sentimento – que nunca deixou de ser maioritário – de que criticar o que não correu bem nos últimos anos não obriga à "revolução" (destruição do sistema democrático). Os eleitores do mundo ocidental deixaram de saber o que é a "revolução". Preferem protestar, mas já não abdicam do conforto material e tecnológico.

Terá sido a última oportunidade para virar a agulha do “isto vai ficar ainda pior” para “isto foi só uma fase”. O risco ainda é grande – mas a inflexão foi crucial.
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