Navio-escola Sagres. Diário de Bordo 13 de janeiro

por António Louçã (jornalista) e Rui Manuel Silva (repórter de imagem) - RTP

António Louçã (jornalista) e Rui Manuel Silva (repórter de imagem) - RTP

O navio-escola Sagres está a cumprir desde o início de janeiro a viagem de circum-navegação, com partida em Lisboa. O percurso ocupará 371 dias. A bordo, durante parte da rota, seguem o jornalista António Louçã e o repórter de imagem Rui Silva.

13 de Janeiro – Largámos do porto de Santa Cruz de Tenerife, Canárias, às 10h da manhã, a caminho da Cidade da Praia, Cabo Verde. Está previsto navegarmos seis dias, com bom vento, que permitirá utilizar as velas em grande parte do caminho. Mas os motores são, ainda assim, um auxiliar valioso e uma garantia de que se cumprem os calendários, com bom ou mau vento.

O bom vento não é aqui uma excepção. O arquipélago das Canárias é batido pelos ventos alísios, que enfunam as velas, e trazem pedaços do continente africano. O comandante Maurício Camilo explica-nos o contraste entre a areia escura, vulcânica, das praias de Tenerife, e a areia fina e clara de algumas ilhas, como Lanzarote: esta, trouxeram-na os ventos de África. Além da areia, trazem por vezes gafanhotos em quantidade, que já têm saído ao caminho da Sagres em viagens anteriores.

Alguém que, numa rede social, quis desejar boa viagem a um familiar e à guarnição toda da Sagres, fez votos de “vento forte e mar chão”. Os marinheiros mais experimentados registam a boa intenção, mas não deixam escapar o contrasenso. É como querer sol na eira e chuva no nabal. Até agora o bom vento não agitou o mar por aí além, mas o balanço vai-se fazendo sentir. Quando estivermos habituados, já estaremos no próximo porto e esse balanço irá connosco, e connosco ficará algum tempo, como o som do mar nas volutas de um búzio, até os nossos reflexos se readaptarem à terra firme.

A maior parte da guarnição não é tão experimentada e faz esta viagem pela primeira vez. Parte do tempo da viagem vai estar dedicada a exercícios. Fomos avisados de que a voz de “emergência”, quando ouvida uma vez, não é para ter em conta. Só será para valer se for repetida três vezes. Nesse caso, devemos concentrar-nos todos junto do poço, para contagem rápida. E, num caso mais sério, cada um de nós tem o número da jangada que lhe foi atribuída, e a mais duas pessoas.
Rui Manuel Silva (dir.) e António Louçã (centro) com dois membros da tripulação do Navio-escola Sagres

Uma série de normas não escritas valem para nós, hóspedes e passageiros, e para a guarnição toda. Terá de pagar uma rodada quem subir pela primeira vez ao mastro, terá de pagá-la quem, inadvertidamente, subir pela escada de bombordo quando o navio está a navegar. A grande percentagem na guarnição de marinheiros recém-saídos da escola náutica torna estas estreias relativamente frequentes.

Um dos jovens estreantes na navegação oceânica diz-nos quanto lhe custou deixar Santa Cruz de Tenerife. Sabíamos das despedidas difíceis que houve em Lisboa, por ser uma viagem longa de um ano. Nesse tempo, hão-de vir ao mundo crianças de pais embarcados na Sagres e há sempre a expectativa, algo ansiosa, de que os familiares mais idosos se conservem de boa saúde. Mas porquê a mágoa de deixar Santa Cruz? O jovem marinheiro explica-a com acentos poéticos da era digital: ao sair do porto onde tinha rede, foi como se se despedisse da namorada pela segunda vez. Numa circum-navegação que vai durar um ano, terá de voltar a despedir-se tantas vezes quantas voltar a ter rede e quantas voltar a perdê-la, na partida. As cenas lancinantes de Lisboa não se repetem em cada porto, porque as pessoas que ficam em terra já ficaram longe; mas volta a haver despedidas difíceis.
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