Operação Marquês. José Sócrates à beira de saber se vai a julgamento

20 de fevereiro de 2005, 22 de novembro de 2014. Quase dez anos separam duas das datas mais decisivas da presença de José Sócrates no espaço público. Em 2005, tornou-se o primeiro - e até hoje único - líder de Governo socialista a ser eleito com maioria absoluta, ao alcançar uma vitória histórica. Na segunda data, passou a ser o primeiro ex-primeiro-ministro - e também, até hoje, o único - a ser detido. Esta sexta-feira, 9 de abril de 2021, quase sete anos depois de ter viajado diretamente de Paris para o Aeroporto de Lisboa, de onde passou para prisão preventiva em Évora por dez meses, conhece-se finalmente a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa sobre o processo da Operação Marquês. O peso histórico do dia está adquirido à partida, quer o antigo governante enfrente ou evite um julgamento.

Há quase sete anos, o país assistia ao início de um processo sem precedentes que levou à detenção inédita de um antigo primeiro-ministro em pleno Aeroporto de Lisboa. José Sócrates tinha sido chefe de Governo durante seis anos, entre 2005 e 2011, e acabaria detido por fortes indícios de corrupção, branqueamento de capitais ou fraude fiscal qualificada.

A 22 de novembro de 2014, pouco depois das 22h00, Sócrates aterrava na capital portuguesa num voo vindo de Paris. À saída, na manga do avião, um grupo de agentes da Autoridade Tributária aguardava pelo antigo governante. A situação não terá surpreendido José Sócrates: dias antes, outros visados pela Operação Marquês tinham sido detidos, desde logo o amigo e empresário Carlos Santos Silva e o motorista João Perna.

Após a detenção, seguiram-se três dias de interrogatório, a que por sua vez se seguiram quase dez meses de prisão preventiva.

Em direto, a partir das televisões, Portugal assistia a uma situação inédita a envolver um ex-governante, que ficaria detido no Estabelecimento Prisional de Évora, instalações de alta segurança inaugurada pelo seu próprio Governo, em 2007.

Na passagem por Évora, torna-se no detido número 44 e recebe, nos meses seguintes, um desfile de visitas por parte de várias personalidades do mundo da política, com destaque para figuras de relevo do Partido Socialista. Na altura, apenas três anos tinham passado desde que abandonara o Governo em 2011, na sequência da grave crise económica que trouxe a troika a Portugal. E menos de dez anos tinham passado desde o apogeu da sua carreira política.
O caminho até ao poder

Ainda antes da detenção, a carreira profissional, política e até académica do primeiro-ministro estivera sempre envolta, direta ou indiretamente, em algum grau de polémica. A atividade política começou logo após o 25 de Abril, tendo sido um dos membros fundadores da JSD em 1974. Seis anos depois, em 1981 e já com estudos na área de Engenharia Civil, muda a filiação para o Partido Socialista e vai ocupando alguns cargos locais na Covilhã e Castelo Branco.

Em 1987 é eleito deputado pela primeira vez, precisamente em representação do distrito de Castelo Branco. A ascensão dentro do partido é rápida: em 1991 torna-se porta-voz do PS para assuntos ambientais e chega a um cargo governativo pela primeira vez em 1995, no primeiro executivo liderado por António Guterres. Sócrates começa como secretário de Estado Adjunto do ministro do Ambiente e, apenas dois anos depois, torna-se adjunto do próprio primeiro-ministro, destacando-se nas áreas do desporto e no combate à toxicodependência.

No segundo Governo de Guterres, que toma posse em outubro de 1999, sobe a ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território, cargo que irá ocupar até 2002. No final do ano anterior, em dezembro de 2001, o primeiro-ministro anunciara a demissão após um resultado catastrófico nas eleições autárquicas e o Governo cai para evitar o “pântano político”.

Com o PSD e Durão Barroso no poder, José Sócrates passa a comentador político na RTP, ao lado de Santana Lopes, sem saberem então que seriam ambos os próximos primeiros-ministros de Portugal. Em paralelo, Sócrates mantém-se como uma figura proeminente do PS, como deputado da oposição na Assembleia da República.

O tom cordial de debate depressa se torna em ataque cerrado na arena política com a sucessão frenética de acontecimentos naqueles anos. Quando Barroso abandona o Governo para chefiar a Comissão Europeia, no verão de 2004, o então Presidente Jorge Sampaio indica o social-democrata Santana Lopes como substituto do primeiro-ministro. A decisão cai com estrondo nas hostes do Partido Socialista, a família política do então Chefe de Estado.

Ao privilegiar o substituto deixado por Durão Barroso, o Palácio de Belém procurou evitar que afinidade pessoal e proximidade política pudessem perturbar a decisão, anunciada a 9 de julho de 2004. Ferro Rodrigues, amigo e camarada de Sampaio há vários anos, causa um novo terramoto político ao demitir-se, nesse mesmo dia, de secretário-geral do partido, assumindo uma derrota “pessoal e política”.

Fica assim aberto o caminho para José Sócrates, que chega a secretário-geral do PS em setembro de 2004, com uma derrota esmagadora sobre os outros dois candidatos, Manuel Alegre e João Soares.

Como líder da oposição, Sócrates assume uma postura combativa nos escassos meses de Santana Lopes no poder. A sucessão de escândalos e polémicas leva a grandes acusações e batalhas na Assembleia da República.

"A conclusão a que chegamos é que o Dr. Santana Lopes não tem jeito para primeiro-ministro", concluía então Sócrates a 17 de novembro de 2004, durante um debate no Parlamento.

Menos de um mês depois, a “bomba atómica” cai sobre a Assembleia da República. A 10 de dezembro de 2004, o Presidente Jorge Sampaio dissolve o Parlamento e anuncia a marcação de eleições antecipadas para 20 de fevereiro de 2005.
Da maioria absoluta à troika. Seis anos no Governo

É em 2005 que entra em cena como candidato e depois como primeiro-ministro. Ainda em campanha, despontou um dos primeiros casos polémicos dos muitos que viriam a marcar a passagem de Sócrates pela política. Surgem então as primeiras possíveis ligações do socialista ao caso Freeport na altura em que era ministro do Ambiente. Sócrates não fez parte do processo mas chegou a ser investigado.

Na altura, o estudo de impacte ambiental ao projeto do centro comercial em Alcochete foi aprovado em tempo recorde, sendo que o Governo alterou os limites da área da Zona de Proteção Especial (ZPE) do Estuário do Tejo para a preservação de aves selvagens, para que a área onde a infraestrutura comercial foi construída ficasse de fora dos limites da zona protegida.

No âmbito deste caso, José Sócrates ainda respondeu às perguntas dos procuradores em 2010, na altura já como primeiro-ministro. No entanto, não chegou a ser incluído no processo.

No que às eleições diz respeito, o secretário-geral do PS dominou por completo a campanha contra o primeiro-ministro demissionário, Santana Lopes, candidato pelo PSD. Na noite de 20 de fevereiro de 2015, José Sócrates alcançava o melhor resultado da história do PS e a primeira maioria absoluta do partido.

“A partir de hoje Portugal tem uma nova maioria e tem também uma nova esperança no seu futuro. (…) Com esta vitória cai um velho mito da política portuguesa: o mito de que só a direita podia ambicionar ter maioria absoluta no Parlamento”, afirmava então perante centenas de militantes em êxtase.
O PS consegue 45 por cento dos votos e garante a eleição de 121 do total de 230 deputados à Assembleia da República. José Sócrates toma posse a 12 de março de 2005 e no Governo constam nomes proeminentes como António Costa, a ocupar o cargo de ministro da Administração Interna até 2007, e Augusto Santos Silva, que é ministro dos Assuntos Parlamentares até 2009 e seria ministro da Defesa Nacional no segundo mandato, entre 2009 e 2011.

No Governo, destacam-se alguns projetos como os de simplificação da Administração Pública, como o Simplex, introduzido em 2006 com o objetivo declarado de combater a burocracia e modernizar os serviços do Estado. No campo da Educação, ficam para a história os computadores Magalhães, programa que, sem deixar de estar envolto em polémica, levaria o primeiro computador até à casa de muitos portugueses, ou o programa Novas Oportunidades, virado para a formação dos adultos.

Os anos de governação de Sócrates ficam ainda marcados pelo novo referendo à despenalização do aborto, convocado por iniciativa do Executivo para 2007, quase dez anos depois de o “não” ter vencido. Desta feita, mais de 59 por cento dos portugueses votaram “sim” e abriram caminho à alteração da lei. Já em 2010, no decorrer do segundo mandato, a Assembleia da República aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal, com os votos a favor dos deputados socialistas.

Nas obras públicas, os mandatos de José Sócrates ficaram marcados pela discussão intensa sobre a construção do novo aeroporto de Lisboa e de uma linha de alta velocidade (TGV), projetos que nunca viriam a sair do papel.

No plano externo, a governação de seis anos de José Sócrates fica amplamente marcada pela presidência rotativa do Conselho da União Europeia, em que o executivo focou as relações do bloco europeu com o Brasil e África. O momento alto foi o da assinatura do Tratado de Lisboa, a 13 de dezembro de 2007 no Mosteiro dos Jerónimos.

A par de tudo isto, as polémicas continuavam. Em 2007, explode o caso da licenciatura na Universidade Independente. A história, divulgada na altura pelo Público, dava conta de que o primeiro-ministro tinha concluído a licenciatura em Engenharia Civil a um domingo. O “engenheiro”, nome pelo qual era muitas vezes designado o então primeiro-ministro, apesar de nunca ter sido reconhecido pela Ordem dos Engenheiros, vê levantadas as primeiras grandes acusações contra si a nível académico.

Em causa estava o bacharelato iniciado em Coimbra, ainda em 1979. José Sócrates interrompe os estudos e só volta em 1995, passando pelo ISEL e depois pela Universidade Independente, em Lisboa. Chegado a esta última instituição, faltavam-lhe ainda 12 cadeiras do curso. Terminou aí a licenciatura, mas a falta de documentos e outros elementos suspeitos, como o facto de as notas terem sido lançadas a um domingo, levam a PGR a investigar e mais tarde arquivar o caso contra o então primeiro-ministro. A Universidade Independente acaba por fechar por decisão do ministro da Educação do Governo de Sócrates, Mariano Gago, e o reitor foi detido por suspeitas de corrupção.

Seguem-se os escândalos Taguspark e o processo Face Oculta, que direta ou indiretamente envolvem o nome de José Sócrates. O escândalo de corrupção em que Armando Vara, ex-secretário de Estado e ex-ministro socialista, antigo administrador da Caixa Geral de Depósitos e ex-vice-Presidente do Millenium BCP, viria a ser condenado e detido já em 2019, no Estabelecimento Prisional de Évora.

O escândalo Face Oculta visou o grupo económico do empresário Manuel Godinho e envolveu crimes como lavagem de dinheiro, corrupção e evasão fiscal. Quando ainda era primeiro-ministro, em 2010, surgiram as primeiras revelações de eventuais ligações de José Sócrates a esta teia de influências. Alegadamente, o então chefe de Governo teria tentado coordenar a compra da TVI pela PT, num plano para controlar parte da comunicação social em Portugal.

Durante a governação de Sócrates houve várias acusações no âmbito da imprensa, com a tentativa por parte do primeiro-ministro em dominar as notícias que saíam sobre si. Pelo menos é o que consta na acusação do Ministério Público da Operação Marquês, que cita por exemplo o surgimento do jornal i antes das eleições legislativas de 2009, através do qual o primeiro-ministro procurava obter um grupo de comunicação social que lhe fosse favorável, ou as tentativas de interferência de Armando Vara na Controlinveste, grupo que detém vários meios de comunicação, como o Diário de Notícias, o Jornal de Notícias e a TSF. O primeiro-ministro assumiu sempre uma postura combativa contra a comunicação social e processou pelo menos uma dezena de jornalistas de vários órgãos até 2010.

Mas foi devido ao estado da economia que tudo se desmoronou. Em 2009, José Sócrates consegue alcançar a vitória nas eleições legislativas, mas perde a maioria absoluta, ao reunir 36,5 por cento dos votos, conseguindo eleger apenas 97 deputados. Nesta altura, já a crise do subprime, que implodira nos Estados Unidos em 2007, tinha varrido o mundo e estendido a sua influência a toda a economia mundial.

Portugal, que trazia na bagagem vários anos de estagnação económica e uma queda do emprego crónica, que vinha ainda antes da chegada de Sócrates ao poder, foi atingido desde logo nos setores das exportações e no sistema bancário. No final de 2008, dá-se a nacionalização do BPN. O PIB português afunda, a taxa de desemprego sobe sem parar e a quebra do sentimento económico é evidente sobretudo na transição para o ano de 2009.

A grave crise económica deu lugar às crises da dívida pública na Zona Euro, com destaque para os casos de Portugal, Grécia, Espanha e Irlanda. Em 2011, as taxas de juro das obrigações a dez anos ultrapassam linhas vermelhas.

Após um desacordo com o então ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, José Sócrates acaba por sucumbir e anuncia, a 6 de abril de 2011, o pedido de ajuda internacional para o resgate financeiro. A troika entrava em Portugal pela terceira vez em pouco mais de 30 anos e só viria a sair em 2014, já sob a liderança do Governo de Pedro Passos Coelho.

Peça do jornalista Marcelo Sobral a 6 de abril de 2021, por ocasião dos dez anos do pedido de ajuda financeira externa.

Semanas antes, a 23 de março do mesmo ano, o primeiro-ministro tinha anunciado aos portugueses o pedido de demissão, culpando a oposição por não ter chumbado o famigerado PEC 4.

“Hoje todos os partidos da oposição rejeitaram as medidas que o Governo propôs para evitar que Portugal tivesse que recorrer a um programa de assistência financeira externo. Fizeram-no sem apresentar qualquer alternativa a essas medidas de consolidação orçamental. Fizeram-no recusando qualquer negociação, qualquer compromisso, qualquer espaço para o diálogo político. De forma consciente, a oposição retirou ao Governo todas as condições para continuar a governar”, afirmava então o primeiro-ministro, apontando culpas para o novo Presidente do PSD, Pedro Passos Coelho.

O pedido de demissão precipita eleições antecipadas em 2011, com José Sócrates a apresentar-se a um terceiro escrutínio à frente do PS. Nas urnas, os portugueses penalizam fortemente o Governo e o primeiro-ministro demissionário após os vários casos e polémicas, num contexto económico mais grave de dia para dia. O PS obtém o pior resultado eleitoral desde 1987 e consegue apenas 28,1 por cento dos votos. Logo na noite eleitoral, José Sócrates sai de cena e pede a demissão como secretário-geral.
De Paris a Évora

Então liderado por um Governo de coligação de direita, Portugal enfrenta nos anos seguintes os desafios da austeridade e da assistência financeira internacional. Enquanto isso, José Sócrates volta para a televisão, tendo sido comentador político na RTP1 entre 2013 e 2014, até à altura em que foi detido no âmbito da Operação Marquês. Entre esses anos foi igualmente presidente do Conselho Consultivo do grupo Octapharma para a América Latina, contrato que cessa em 25 de novembro, após a detenção no Aeroporto de Lisboa.

Mas a decisão que mais arrebatou o país foi mesmo a de ir estudar Ciência Política para o Institut d’Études Politiques de Paris (Science Po), na variante de Teoria Política. Em Paris, Sócrates viveu no 16 Arrondissement, uma zona requintada e bastante central da capital francesa. Esse mesmo foi um fator de interesse para o Ministério Público, que no âmbito da Operação Marquês procurou perceber como é que o ex-primeiro-ministro conseguia suportar as despesas sem um trabalho fixo.

“Sinceramente não me parece que pedir dinheiro emprestado a um amigo seja um crime”, respondeu por escrito à TVI, numa resposta enviada já a partir do Estabelecimento Prisional de Évora. Numa subsequente carta enviada ao Diário de Notícias, ainda a partir de Évora, o ex-governante esclarece que viveu na casa de Carlos Santos Silva naquela cidade, ainda que as decisões ligadas às obras no apartamento tenham sido tomadas pelo ex-primeiro-ministro.

Mas voltando a Paris: a dissertação de mestrado teve como tema a tortura nos regimes democráticos e acabou por dar em livro. “A Confiança no Mundo: Sobre a Tortura em Democracia” foi apresentado a 23 de outubro de 2013 pelo ex-Presidente da República, Mário Soares, e também por Lula da Silva, com quem José Sócrates viria a traçar paralelismos em várias ocasiões após a detenção do antigo Presidente brasileiro no âmbito do caso Lava Jato, em 2018.

Do próprio livro também resultaram novas polémicas. No âmbito da Operação Marquês, os procuradores que investigaram o caso acreditam José Sócrates não é o verdadeiro autor da obra, mas sim Domingos Farinho, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

O alegado ghostwriter terá recebido ainda 100 mil euros para escrever um segundo livro, “O dom profano – Considerações sobre o carisma”, que chegou às livrarias já depois da passagem do ex-primeiro-ministro ter passado pela prisão.

Isto para além das alegações de que José Sócrates terá gasto 170 mil euros a comprar o seu próprio livro com a ajuda de Carlos Santos Silva, apontado como “testa de ferro” do antigo governante na movimentação e entrega de dinheiro com proveniência ilícita. Mais uma vez, Sócrates alegou sempre que se tratou sempre de empréstimos concedidos pelo amigo.

Neste percurso de polémicas, foi de Paris que Sócrates chegava quando foi detido naquela sexta-feira, 21 de novembro de 2014, na chegada ao Aeroporto de Lisboa. Passou essa mesma noite detido no comando metropolitano da PSP em Moscavide e, após três dias de interrogatório, passou a prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Évora por decisão do juiz Carlos Alexandre.
As relações tensas com o PS

Ao mesmo tempo que se começava a desenrolar a gigantesca Operação Marquês, jogava-se também o futuro do Partido Socialista. Em setembro de 2014, o antigo presidente da Câmara de Lisboa e ex-ministro de Sócrates, António Costa, tinha vencido o até então secretário-geral do partido, António José Seguro, em eleições primárias. Na sequência desse escrutínio, o PS levou a cabo eleições diretas que ocorreram precisamente no mesmo fim de semana em que José Sócrates foi detido.

António Costa foi então a eleições diretas para o cargo de secretário-geral entre os dias 21 e 22 de novembro, sendo candidato sem oposição. Mas os holofotes estavam virados para outro protagonista.

Ainda enquanto candidato pré-confirmado, nas primeiras horas após a detenção de Sócrates, Costa terá pedido aos militantes, através de uma mensagem de texto, a separação clara entre “solidariedade e amizade” pelo ex-primeiro-ministro e a “ação política do PS”. Começava assim a rutura que levou José Sócrates a desfiliar-se do partido anos mais tarde.

No discurso de vitória, ainda com Sócrates detido para interrogatório, o agora secretário-geral do PS garantia que o partido não seguiria as “más práticas estalinistas de eliminação da fotografia deste ou daquele”.

“O PS assume toda a sua história, dos bons e dos maus momentos, e é solidário pessoalmente, mas respeitará escrupulosamente e de forma independente como a justiça deve apreciar casos judiciais que só à justiça cabe apreciar, e não ao Partido Socialista”, afirmava então.

A verdade é que nos quase dez meses que passou no Estabelecimento Prisional de Évora, José Sócrates recebeu visitas de praticamente todas as grandes figuras do partido, com destaque para Mário Soares, Almeida Santos, António Guterres, Ferro Rodrigues, Vieira da Silva e Jorge Coelho.

O próprio futuro primeiro-ministro, António Costa, marcou presença numa visita em dezembro de 2014. Parco em declarações, o secretário-geral pedia: “Deixemos a justiça funcionar em todos os seus valores”. Uma primeira versão da frase que viria a ser amplamente repetida no futuro: “À justiça o que é da justiça, à política o que é da política”.

"Não há bem mais precioso que a liberdade. Quem está privado da liberdade está com certeza a passar um mau bocado", afirmou ainda António Costa na única visita a Évora.

Desde o princípio que José Sócrates nega todas as acusações contra si e diz-se mesmo um preso político, privado de liberdade como uma tentativa de impedir a vitória do PS nas eleições legislativas de outubro de 2015. Nos meses em que esteve detido, surge um movimento cívico “José Sócrates sempre!” e são até criados hinos de apoio.

Em junho de 2015, após seis meses de prisão, o Ministério Público propõe que José Sócrates passe a prisão domiciliária com pulseira eletrónica, algo que o ex-primeiro-ministro recusa, por considerar que se trata de uma “meia libertação” com objetivo de disfarçar “o erro original”. Na altura, José Sócrates também se opôs à implementação de “vigilância eletrónica” que era apontada como necessária.

A medida de coação viria mesmo a ser alterada a 4 de setembro de 2015 e o ex-governante passou a estar em prisão domiciliária com vigilância policial, sem pulseira eletrónica. Na altura, o Ministério Público apontava para a consolidação de indícios e para a diminuição do "perigo de perturbação de inquérito".


Poucas semanas depois, a 16 de outubro, é novamente alterada a medida de coação para Termo de Identidade e Residência, com proibição de contacto com os restantes arguidos da Operação Marquês.

É assim que José Sócrates tem estado a aguardar o desenvolvimento do processo. Em outubro de 2017, foi conhecida a acusação da Operação Marquês por parte do Ministério Público, envolvendo um total de 28 arguidos, 19 pessoas singulares e nove pessoas coletivas. José Sócrates é acusado de um total de 31 crimes, incluindo a prática de corrupção passiva de titular de cargo político (3), branqueamento de capitais (16), falsificação de documento (9) e fraude fiscal qualificada (3).

Com a geringonça no poder a partir de 2015 e António Costa como primeiro-ministro, o afastamento entre Sócrates e o partido foi gradual e culminou em maio de 2018 com o anúncio da desfiliação do PS, dias depois de Carlos César ter afirmado, sobre o caso, que “a vergonha é maior” em relação a Sócrates porque se tratava de um ex-primeiro-ministro, confessando que o partido ficara “entristecido” e até “enraivecido”.

Sócrates acusou a liderança do partido de nunca ter saído em sua defesa perante os “abusos da justiça” e de lançar contra si uma “condenação sem julgamento”.

“A injustiça que a direção do PS comete comigo, juntando-se à direita política na tentativa de criminalizar uma governação, ultrapassa os limites do que é aceitável no convívio pessoal e político. Considero, por isso, ter chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo”, escreveu na altura no Jornal de Notícias.

Mesmo com o afastamento declarado, o "embaraço" continuou. No Parlamento e na comunicação social, os partidos da oposição nunca deixaram de associar de forma incriminatória o atual PS e o Governo que lidera o país aos anos de governação de José Sócrates. Em campanhas e debates, elementos da oposição procuraram mostrar a ligação de líderes socialistas ao lado do ex-primeiro-ministro de forma a denegrir a imagem do visado, sendo o último dos exemplos o da recente candidata à Presidência da República, Ana Gomes. Por isso, qualquer decisão futura poderá também ter também o seu impacto a nível político.
Os dois lados da balança

Nestes quase sete anos, a Operação Marquês nunca deixou de marcar a atualidade noticiosa e política. Em janeiro de 2019, iniciou-se a fase instrutória do processo no Tribunal Central de Instrução Penal, sob direção do juiz Ivo Rosa, em regime de exclusividade neste processo desde novembro de 2018.

Os interrogatórios começaram ainda em 2019 e em março de 2020 arrancou o debate instrutório no Campus de Justiça, em Lisboa, um espaço também inaugurado durante o mandato do ex-primeiro-ministro. Para além da morosidade do processo e dos atrasos em algumas diligências que até ali ocorreram, o debate instrutório viria também a ser interrompido devido à pandemia de Covid-19, terminando apenas a 2 de julho do ano passado.

Finalmente, a 23 de março de 2021, o juiz Ivo Rosa anunciou que a decisão instrutória seria então conhecida esta sexta-feira, 9 de abril de 2021. Termina assim a fase de instrução do maior processo de corrupção investigado no Portugal democrático, no dia em que se ficará a saber quem vai a julgamento e que crimes serão julgados. No entanto, daqui até à conclusão total do processo ainda poderão decorrer muitos anos, entre o julgamento e os possíveis recursos a serem apresentados.

A dúvida do momento é perceber até que ponto poderá José Sócrates ir a julgamento por fraude fiscal e lavagem de dinheiro, isto caso o juiz Ivo Rosa deixe cair os crimes de corrupção de que foi acusado. Aliás, a grande dúvida é mesmo se a acusação por corrupção se mantém, uma vez que a defesa argumenta que não existem provas substanciais dos três crimes de corrupção passiva de que é acusado.

Julgado ou despronunciado, independentemente do futuro da Operação Marquês daqui para a frente, o futuro deste processo poderá ter um grande impacto para a política e para a justiça em Portugal: nos próximos anos, o país irá assistir ou ao julgamento inédito de um antigo chefe de Governo e de uma elite político-económica que liderou o país durante seis anos ou à perda de credibilidade de uma das mais mediáticas investigações desde o 25 de Abril.