A "Operação Georgette". Como as trincheiras portuguesas foram atacadas

por RTP

Na noite de 8 para 9 de abril, desencadeia-se a ofensiva alemã contra o sector português da frente. Quem viveu esse momento, ficou sempre a recordar o intenso bombardeamento de artilharia, seguido pelo avanço das tropas de assalto e pela captura de um número invulgarmente alto de prisioneiros portugueses.

O soldado António Santos foi mandado avançar na madrugada de 9 de abril para as primeiras linhas e daí em diante foi recuando - à ordem do seu comandante, como faz sempre questão de dizer.

O relato é "dantesco" e nele nem falta o elemento das máscaras antigás, que tiveram de permanecer colocadas durante toda a noite. Às 8h da manhã, tiraram-nas por parecer que tinham terminado os ataques de gás, mas tiveram de voltar a pô-las por constatarem que o gás utilizado passara a ser de outro tipo.


Memórias de militares portugueses sobre a batalha de La Lys
Do dia 9 de abril, a única coisa que Manuel Leandro Revez recordava era um bombardeamento mais prolongado do que o habitual. Recordava-se também de se ter visto cercado por todos os lados e de ter perdido a noção do que estava a passar-se. Recuperou-a depois, já na retaguarda, para onde alguém o tinha levado.

Outros relatos que se conseervaram sobre o combate dão a imagem de uma grande confusão, no meio da noite, do nevoeiro, dos ataques de gás que obrigavam a manter as máscaras postas. E, a partir de certa altura, é também a imagem de um combate quase corpo a corpo, quando António Santos começa a ouvir, no buraco onde está metido, as vozes dos feridos, algumas delas também em alemão. Já há alemães feridos. O inimigo está muito perto.

O diário de António Santos relata que os soldados portugueses, flagelados por fogo de morteiro, queriam render-se mas durante muito tempo não se atreveram a subir ao parapeito com uma bandeira branca. Ficaram então no seu lugar, "amarradinhos", à espera que chegassem os alemães, para então levantarem os braços e se declararem "bons prisioneiros". Os soldados alemães, ao chegarem, pediram-lhes cigarros.

O historiador militar Luís Alves Fraga admite que os soldados portugueses, surpreendidos pela retaguarda, são capturados "à mão", deixam-se apanhar "como coelhos".

Do dia 9 de abril, Manuel Lourinho recordava a febril actividade no posto de socorros, tratando feridos que constantemente lhe chegam, alguns arrastando-se já sem conseguirem andar, mas também sem haver maqueiros que possam ir buscá-los. O alferes-médico é atormentado com a preocupação de que, provavelmente, para cada ferido que consegue chegar haja dez que não consigam.


Nessa situação alguém lhe diz que está a chegar o Exército francês, com reforços. Mas, no meio da confusão, os alemães foram afinal tomados por franceses. São os alemães que chegam, para os aprisionarem.

Manuel Lourinho não faz menção de resistir. A sua preocupação é ainda a de prestar primeiros socorros e tratar os feridos, alguns deles em estado muito grave. Para o resto da vida, irá acompanhá-lo o trauma de os alemães o terem levado prisioneiro imediatamente, impedindo-o de tratar os seus feridos.

Na sua infância, fazia confusão ao neto, José Carlos Soares Machado, que o avô não tivesse disparado um único tiro. Demorou o seu tempo, até perceber que o papel do médico militar é o de salvar pessoas, não o de disparar sobre elas.


Os motivos alemães para tomar como alvo a frente portuguesa
Do lado português, havia a noção da iminência de um ataque alemão e houve repetidos alertas dirigidos ao comando das forças britânicas para que se tomassem medidas.

Em 9 de abril, o corpo de exército que devia guarnecer o sector português da frente está reduzido a uma divisão reforçada com uma brigada da outra divisão.

Para os chefes militares britânicos, a 2ª Divisão portuguesa devia "morrer na linha B".


Ao longo do mês de março, os alemães foram-se apercebendo da fragilidade das tropas portuguesas e esse é um motivo importante para decidirem transformar num ataque principal as operações que, naquele sector, apenas tiveram até aí um carácter de manobras de diversão.

Outros motivos para a decisão de concentrar em 9 de abril o ataque no sector português são o factor surpresa e, também, a constatação de que o mês de março foi afinal menos chuvoso do que o habitual e o terreno se encontra menos alagado.



Do lado alemão, era conhecido o estado de insatisfação dos militares portugueses, nomeadamente por factos como o roulement das tropas, como as licenças dos oficiais, que por vezes nem voltavam, e também o agravamento desses factores com a chegada ao poder de Sidónio Pais no final de 1917.

Significado da batalha de La Lys
A batalha de La Lys, iniciada em 9 de abril, só terminou em 24 de abril. O CEP desapareceu logo no dia 10, mas a batalha prosseguiu com tanta intensidade que o Estado Maior francês chegou a considerar a hipótese de vir reforçar as tropas britânicas. Se houve um Alcácer-Quibir em La Lys, sustenta o investigador, não foi estritamente do CEP, mas do Exército britânico.

Nessa noite de 8 para 9 de abril, começara a "Operação Georgette", que irá prosseguir até 29 de abril. As tropas portuguesas tinham a missão de aguentarem o seu sector, correspondente a 11 Km da frente. Mas os alemães conseguiram passar nesse sector.

Tal como tinha feito algumas semanas antes no Somme, o alto comando alemão determina agora uma grande concentração de meios num sector da frente com cerca de 20 quilómetros, entre Armentières e o canal de La Bassée, para aí romper as linhas dos aliados.

O sector com cerca de 11 quilómetros dessa frente entregue às forças portuguesas estava nesse momento guarnecido com cerca de metade do seu potencial anterior, e muito abaixo do que era a média dos outros sectores aliados.

Preparação e desencadeamento da ofensiva
Com a artilharia da frente, os alemães fizeram variar o seu fogo nos dias anteriores à operação, para localizarem com maior precisão a artilharia portuguesa, e para esta ser depois neutralizada pelas novas baterias que haviam de chegar, e que haviam de perfazer um total de 1500 bocas de fogo numa frente de 12 quilómetros.

Em conformidade com a doutrina de Bruchmüller, a ofensiva começou com um emprego em profundidade de artilharia pesada e ligeira, sobre os postos de comando, os centros logísticos e as comunicações portuguesas. E produziu efectivamente uma quebra nas comunicações.

O intenso bombardeamento iniciado às 4h15 da madrugada de 9 de abril corta as comunicações e produz baixas muito significativas.

Com o bombardeamento alemão, as comunicações telefónicas do sector português são completamente cortadas. Ficam a existir apenas as comunicações por três outras vias, qualquer delas altamente precária: os very lights, os pombos-correio e os estafetas.

Durante quatro horas e meia, o 6º Exército alemão lança 1,4 milhões de granadas sobre as posições portuguesas. Na sequência, quando as tropas de assalto entram nas trincheiras portuguesas, encontram soldados assustados, que se entregam imediatamente.


No seu diário, o tenente-coronel João Craveiro Lopes recorda o inferno do bombardeamento alemão em 9 de abril - uma experiência traumática que nunca lhe será apagada da memória e, ao longo da vida, voltará a fazer-se presente sempre que ocorra uma simples trovoada.


O bombardeamento começa por visar a retaguarda, para os comandos das divisões, por forma a cortar a comunicação. Depois, vai rolando de trás para a frente, visando primeiro os comandos das brigadas e só avançando depois para as primeiras linhas.

Comportamento português perante a ofensiva alemã
Luís Alves Fraga destaca, na história do soldado Aníbal Milhais, o facto muito revelador de ele só ter podido disparar com a sua metralhadora pesada contra forças alemãs a avançarem frontalmente, por se encontrar em posições mais recuadas. Todos os que se encontravam em primeiras linhas foram contornados pelo ataque alemão e supreendidos pela retaguarda.

Há grupos de 50 homens que tentam fugir, e que o fazem de forma desorganizada. Os relatórios britânicos dão a medida dessa desorganização, ao relatarem, por vezes com exagero, uma retirada de soldados que abandonaram as suas unidades, as suas armas, as suas roupas.


Uma espécie de "polícia do campo de batalha", como lhe chamavam os alemães, obrigava por vezes os combatentes em debandada a voltarem às primeiras linhas - na ponta da espingarda. Em 9 de abril houve casos desses com as tropas portuguesas, mas também com as inglesas.

Outros relatórios referem casos em que houve uma resistência denodada por parte de tropas portuguesas. No conjunto da "Operação Georgette", que enfrentou os portugueses em 9 e 10 de abril, e continuou contra outras forças aliadas até ao final de abril, o Exército alemão perdeu cerca de 90.000 homens.

O elevado número de prisioneiros portugueses pode explicar-se em parte porque os soldados do CEP geralmente se entregaram logo, e numa outra parte porque os soldados alemães, ao encontrarem aqueles inimigos aterrorizados pelo bombardeamento parecem tê-los encarado com sentimentos de uma certa compaixão.

Para além de serem poupados no momento da capitulação, os soldados portugueses, tal como os outros prisioneiros de guerra, foram geralmente tratados com correcção. Ambos os partidos beligerantes observaram no essencial as leis da guerra, tal como elas estavam consignadas na Convenção da Haia.


Do lado alemão, havia uma atitude de menosprezo, imbuído de preconceitos racistas, contra os portugueses, considerados "crianças-soldados", que seriam vencidos facilmente.

E, na verdade, houve do lado português poucos mortos e muitos prisioneiros, muito embora não fosse fácil nem isento de riscos para um soldado entregar-se como prisioneiro no meio de uma ofensiva tão rápida.

A própria sobranceria dos alemães, de não estarem animados de grande ódio e de não levarem a sério os inimigos portugueses, seria um factor favorável à concretização das capturas, com o objectivo de conduzir os prisioneiros à retaguarda.


O rácio habitual nesta guerra era o de um morto por cada quatro prisioneiros. Mas no caso da batalha de 9 de abril, as forças portuguesas registam um rácio de prisioneiros muito superior: cerca de 6500 prisioneiros para cerca de 400 mortos.

Uma das explicações para este rácio excepcionalmente alto encontra-se no carácter desorganizado da retirada portuguesa, que leva muitos militares a optarem por constituir-se como prisioneiros de guerra.


Como a ofensiva alemã se atolou no terreno
O terreno pantanoso que agora dificulta a progressão dos alemães é o mesmo que nos meses anteriores minou o moral dos soldados meridionais, pouco habituados a tanto frio, tanta chuva e tanta lama.

É um terreno difícil, um verdadeiro "deserto de lama", com uma única estrada, que antes não era cenário para grandes combates e agora não pode ser cenário para avanços fulminantes.

As bolsas de resistência aliadas, inclusive as portuguesas, não foram relevantes para a desaceleração e, finalmente, o atolamento da ofensiva alemã. Na análise do historiador militar Chrisitan Stachelbeck, o factor decisivo foi a dificuldade de as tropas se movimentarem naquelas condições de terreno.

Na sua progressão, as tropas alemãs esfomeadas deparam com depósitos de víveres aliados e param a comer e beber. Tal como na primeira fase, durante a "Operação Michael", volta a haver relatórios que dão conta de tropas embriagadas em massa. Uma declaração famosa do coronel Lenz, do 6º Exército, indica que as tropas deixaram de atacar, mesmo quando se lhes dá ordens nesse sentido.

As próprias vitórias alcançadas no terreno pelas tropas alemãs eram vitórias pírricas, que rapidamente se convertiam no seu contrário. Os soldados alemães, esfomeados, que se apoderavam dos bem fornecidos depósitos de mantimentos aliados perguntavam-se sobre o sentido que fazia continuarem a combater contra um inimigo dotado de uma tal superioridade material.

A conclusão é que, na era da grande indústria, ganha as guerras quem tenha maior capacidade industrial. E, por terem procedido como se um factor puramente militar pudesse subverter esta lei de ferro, os generais alemães estavam condenados a perder a guerra em que, sublinha Stachelbeck, nunca deviam ter embarcado.

No que diz respeito a Portugal, o episódio de La Lys tem um outro epílogo: ele irá pesar de forma significativa na ruptura entre a elite militar e o regime republicano, como atesta o facto de boa parte dos sublevados do 28 de maio, a começar por Gomes da Costa, terem sido integrantes do CEP.

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