Comemorações do centenário de Vergílio Ferreira começam quinta-feira em Gouveia

por Lusa
Caneta de Vergílio Ferreira Pedro A.Pina

A Câmara Municipal de Gouveia inicia, na quinta-feira, as comemorações do centenário do nascimento do escritor Vergílio Ferreira, com um ciclo que inclui diversas atividades e que terminará em janeiro de 2017.

O ciclo comemorativo começa na quinta-feira, no dia em que se assinalam os 100 anos do nascimento do escritor, a 28 de janeiro de 1916, na aldeia de Melo, no concelho de Gouveia, distrito da Guarda.

As comemorações contarão com a presença do ministro da Cultura, João Soares, e de "um conjunto alargado de individualidades que conviveram ou privaram" com o escritor que morreu a 1 de março de 1996, anuncia o município em comunicado.

A autarquia de Gouveia, presidida por Luís Tadeu, adianta que as comemorações arrancam com três dias de atividades, a realizar entre quinta-feira e sábado, que incluem, entre outros momentos, o lançamento da reedição das obras de Vergílio Ferreira (pela editora Quetzal), a reposição de um busto na praça de São Pedro (no centro da cidade de Gouveia), a inauguração de uma exposição e a realização de um colóquio. Lídia Jorge critica

A escritora Lídia Jorge alertou hoje para o facto de a escola e a universidade estarem a descurar a obra do escritor Vergílio Ferreira, que "foi alguém que amou a literatura, acima de todas as outras coisas".

Todavia, disse a autora de "A noite das mulheres cantoras", no "mundo tal como está organizado, neste momento, é muito difícil recuperar figuras como [a de] Vergílio Ferreira", que considera "estarem um pouco afastadas", "injustamente".

Em declarações à Lusa, a propósito do centenário do nascimento do autor de "Vagão J", Lídia Jorge afirmou que, "a escola e a universidade estão descurando muito a obra de Vergílio, inclusive o romance `Aparição`, que é fundamental para os rapazes, entre os 16 e os 17 anos, que encontravam nessa obra uma grande projeção interior e aprendiam muito com esse livro, que desapareceu, e praticamente já não se lê".

"Está sendo uma perda muito grande. Do ponto de vista estilístico, [Vergílio Ferreira] é irrepreensível, ele tem humor na escrita, ele tem caricatura, por alguma coisa era um admirador do Eça de Queiroz. Não é um sarcástico, mas um irónico, ele ensina", rematou.Contenda

Referindo-se ao autor de "Alegria breve", Lídia Jorge disse que "foi um escritor, do ponto de vista deontológico, admirável. Independentemente de quem produzia os livros, ele gostava de livros e vivia no meio da batalha da literatura".

"Protagonizou, de uma forma muito forte, uma espécie de contenda que durou a segunda parte do século XX, entre uma literatura herdeira do Modernismo, de que ele foi um sucessor, com um romance psicológico e, ao mesmo tempo de tese, ao qual ele aliou os métodos do Modernismo, e, do outro lado, os neorrealistas e seus descendentes, com uma tendência mais coletivista, que depois a minha geração veio a ultrapassar", declarou.

"Os escritores da minha geração fizeram uma espécie de síntese dessas duas perspetivas que pareciam irreconciliáveis", acrescentou.

Foi um "homem intransigente, do ponto de vista ideológico e literário, consigo próprio, até ao último livro, já editado postumamente, Espaço invisível V, e até ao último romance, Cartas a Sandra", frisou.
Antimarxista
"Do ponto de vista ideológico, era um antimarxista. Ele considera que a liberdade pessoal e a liberdade de interior eram superiores a tudo", disse a escritora, sobre o autor que analisou a fenomenologia de Jean-Paul Sartre em "O existencialismo é um humanismo".

Lídia Jorge, aliás, lembra a obra de Vergilio Ferreira "Invocação ao meu corpo", que apontou "o cúmulo desse encómio que ele fazia à solidão do homem, o homem como ser solitário com um destino individualizado".

"Ele nunca deixou de ser um herdeiro do existencialismo, mas mais junto de Malraux, não da face marxista". Neste sentido, a escritora referiu as obras "Pensar" e "Escrever".

"Até ao fim [Vergílio Ferreira] manteve o desejo e o orgulho de ser homem, uma espécie de rival de uma divindade em que ele não acreditava", rematou a autora, que foi sua amiga, e que reconheceu que o autor "foi decisivo" na sua vida.

"Ele foi muito, muito importante e há sentimentos muito fortes que me unem a Vergílio Ferreira", afirmou a escritora que, no ano passado, recebeu o Prémio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora.
"O primeiro a reconhecer-me"
Sobre o autor de "Interrogação ao Destino, Malraux", Lídia Jorge contou que ele esperava sempre obras dos novos escritores, "para perceber o que seria o futuro".

"Podia até não gostar, mas lia e estava sempre atento aos novos escritores", disse a autora, recordando que Vergílio Ferreira foi o primeiro que a reconheceu como seu par.

"Fui muito amiga de Vergílio Ferreira, que foi um escritor que me acompanhou, aquele que primeiro escreveu sobre [o romance] O dia dos prodígios, quando ainda nem sequer estava publicado", contou a autora de "O cais das merendas" à agência Lusa.

"Foi o primeiro escritor a reconhecer-me como seu par, o que me deu uma alegria enorme, como se pode imaginar", recordou Lídia Jorge, autora de "Os Memoráveis", referindo que Vergílio Ferreira foi quem a apadrinhou na literatura.

"Foi aquele que me incentivou, aquele que me reconheceu", sublinhou.

"Era um homem aberto ao futuro, um leitor sólido, foi alguém que partiu à espera do dia seguinte", afirmou.Alegria longa

"Devia falar-se de Vergílio do ponto de vista da alegria longa. Realço os romances da fase mais tardia, Para sempre [1983], Até ao fim [1987], Em nome da terra [1991] e Na tua face [1993], porque são a apoteose da narrativa, ainda que ele seja um grande ensaísta. [Mas] o que ele dizia que mais gostava de fazer, e fez até ao último dia de vida, foi o romance", disse a autora de "Costa dos murmúrios".

Lídia Jorge aponta estes quatro romances como "viscerais, sem marca de escola, em que Vergílio [Ferreira] aproveitou tudo o que aprendeu, juntou a sua experiência de vida e mostrou, na arte de narrar, essa alegria imensa de viver".

A escrita, como ele fez nesses livros, é "um triunfo da arte, perto de Fernando Pessoa".

Antes de morrer, Vergílio Ferreira contou a Lídia Jorge o enredo do romance que contava ainda escrever. "É essa alegria de narrar que devia ser sublinhada" nestas celebrações, defendeu a autora.

"Fixei muito bem a história e pensei: é um livro semelhante aos outros, a história é a mesma, e, com o impacto da morte [dele], que aconteceu dois ou três dias depois, não fui capaz de a contar. A história era a mesma: a impossibilidade de amar a mulher, uma adoração pela mulher que desaparece, era a mesma fixação literária, que dá a impressão que nunca leu Freud".
Vergílio Ferreira: "Nasci para fazer isto"
Vergílio Ferreira, "desde os anos 1950, e sobretudo nos anos 1960, anunciou que o romance ia morrer, que a narrativa tal como nós a tínhamos herdado ia morrer e, na última conversa que tive com ele, perguntei-lhe se o romance estava morto, por que é que ele continuava, e ele respondeu-me: Eu nasci para fazer isto, é o que eu faço melhor e não sei fazer mais nada".

O autor de "Alegria breve" nasceu a 28 de janeiro de 1916, em Melo, uma aldeia da Beira Alta, no concelho de Gouveia. Aos dez anos, os pais emigraram para o Canadá e Vergílio ficou em Portugal, com os irmãos mais novos. Uma peregrinação ao Santuário de Lourdes, em França, influenciou o menino de 12 anos, que decidiu entrar no Seminário do Fundão, de onde saiu aos 18 anos.

A sua experiência nesta escola eclesiástica servirá de mote ao romance "Manhã submersa" (1954), que Lauro António adaptou ao cinema, em 1980, assinando o argumento com o escritor, que fez parte do elenco ao lado, entre outros, de Eunice Muñoz e Canto e Castro, Jacinto Ramos e Adelaide João.

Vergílio Ferreira não seguiu a vida religiosa, terminou os estudos no então Liceu da Guarda e matriculou-se, depois, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo concluído a licenciatura de Filologia Clássica, em 1940. Durante a vida universitária publicou alguns poemas.

Licenciado, iniciou a carreira de docente do Ensino Secundário, em Faro, tendo lecionado, entre outros estabelecimentos, nos liceus de Bragança, Gouveia. Fixou-se em Lisboa, com a efetivação no Liceu Camões.

Em 1946 casou-se com Regina Kasprzykowsky, uma polaca que se refugiara em Portugal, com quem viveu até à sua morte.
Obra premiada
Ao longo da sua carreira, como escritor, recebeu vários prémios entre os quais o D. Dinis, em 1981, o P.E.N. Clube de Novelística, por duas vezes, em 1984 e 1991, por "Para sempre" e "Em nome da terra", o de Ensaio, em 1993, por "Pensar", o da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, em 1984.

Recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores, em 1987 e em 1993, respetivamente por "Até ao fim" e "Na tua face", e o Prémio Camões, em 1992.

Em 1979, foi condecorado com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant`Iago da Espada.

O escritor morreu no dia 1 de março de 1996, no seu apartamento, em Lisboa, onde residia, e está sepultado em Melo, virado para a Serra da Estrela, conforme a sua vontade.Três dias de celebrações

Segundo autarquia, as atividades comemorativas começam pelas 10h00 de quinta-feira, com o lançamento de um postal, selo e carimbo dos CTT alusivos à data, seguindo-se, uma hora depois, a apresentação da reedição integral das obras de Vergílio Ferreira.

Na tarde daquele dia, às 15h00, o escritor Francisco José Viegas, responsável pela edição da Quetzal, estará na Escola Secundária de Gouveia.

No dia seguinte, às 11h00, com a presença do ministro da Cultura, João Soares, terá lugar a cerimónia de reposição do busto de Vergílio Ferreira, na praça de São Pedro.

Para as 11h30, para o Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta, está agendada a inauguração da exposição "Vergílio Ferreira: Os Caminhos da Escrita ou O Fascínio da Arte", que ficará patente ao público até 26 de março. Meia hora depois, no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Gouveia, decorrerá a sessão solene das comemorações.

No sábado, às 15h00, no auditório da Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira, será realizado o colóquio "Vergílio Ferreira: Evocação, Evocações", com a presença de diversas personalidades que, segundo os promotores, "conviveram ou privaram, em algum momento, com o autor".Colóquio e monólogo

Fernanda Irene Fonseca, Francisco José Viegas, Liberto Cruz, Eduardo Pereira, José Gameiro e Alípio de Melo são os nomes já confirmados.

"O colóquio pretende evocar um dos mais marcantes escritores de Língua Portuguesa, mas também passar para o público aspetos menos conhecidos ou pouco abordados sobre o intelectual, o amigo e o professor", afirma a autarquia de Gouveia.

O dia termina com a representação do monólogo "Em memória ou a vida inteira dentro de mim", baseado no romance "Até ao fim", de Vergílio Ferreira, no Teatro Cine de Gouveia (21h30), com interpretação do ator Pompeu José.

A Câmara Municipal de Gouveia adianta ainda que as comemorações do centenário do nascimento de Vergílio Ferreira prosseguirão ao longo de um ano, encerrando no dia 28 de janeiro de 2017.

Veja aqui a reportagem multimédia da Antena 1 e do site da RTP sobre o centenário de Vergílio Ferreira.

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