A independência de São Tomé segundo Tomás Medeiros

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
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Escrito há mais de uma década, "Quando os cucumbas cantam" foi publicado em Portugal no passado mês de abril. O livro de Tomás Medeiros, médico e revolucionário de São Tomé e Príncipe, põe o dedo na ferida dos dias pós-descolonização. Dias que para muitos se transformam em meses, anos.

“Ninguém consegue passar por aí, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado à janela, tu a imaginas, enquanto a noite cai”. São as frases finais do conto Uma mensagem imperial de Franz Kafka, mas poderíamos imaginar que seriam a sinopse de um dos prismas de leitura de Quando os cucumbas cantam de Tomás Medeiros.

Mé Flindó foi à cidade – talvez menos do que cidade – buscar novidades da Independência que esperavam os são-tomenses lá da roça – talvez outra coisa, um povoado, uma vila. E de lá voltou depois de a contra-revolução ter tomado conta da revolução.

Kafka pôs a amplitude continental da China como princípio da alienação do povo, uma fonte inesgotável de quilómetros que se interpunha entre a mensagem do imperador e os ouvidos do último dos seus súbditos.

Aqui – no canto dos cucumbas – não é a distância territorial, mas aquela imposta pelos mecanismos de poder que baralham as engrenagens da libertação na agenda estrangeira de revoluções (muitas das vezes sequestradas pelo interesse particular) a que se seguem contra-revoluções, seguidas de outras contrarrevoluções. Tomás Medeiros desenha esse mundo imperfeito em que os ideais se evaporam nas instâncias superiores sem que cheguem a assentar na cartografia do homem comum.Tomás Medeiros conviveu com os grandes dirigentes africanos do mundo português: Amílcar Cabral, Agostinho Neto ou Marcelino dos Santos. Seria em Angola um dos fundadores do MPLA e em São Tomé e Príncipe dirigente do MLSTP.

Sem soluções para revitalizar a luta anti-colonialista no arquipélago de São Tomé, esteve envolvido nos movimentos que combatiam no continente, como médico militar do MPLA.


A crueza com que Quando os cucumbas cantam desenha esses sistemas imperfeitos em que desembocam as melhores intenções impediu que o livro fosse publicado em São Tomé e Príncipe. Exactamente porque expunha a rede de interesses das elites revolucionárias montadas no alvor das revoluções.

É um retrato de um povo feito de polaroides. Relatos rápidos de uma jornada, a busca de um homem simples através das redes do poder, uma imagem que se vai revelando devagar perante os olhos até estar completa em todos os seus elementos e fazer sentido nessa totalidade. E a totalidade é, como em Kafka, a alienação do povo, a massa humana que paga todas as facturas em todas as circunstâncias, em todos os sistemas políticos. Em todas as oratórias de boas intenções.

A figura que assoma frágil de Mé Flindó é o fio da narrativa. O mensageiro voluntário a quem a curiosidade torna corajoso na tal busca, mais do que dos ventos de liberdade, das certezas com que se deve coser a sua vida. E, nessa coragem de que parece duvidar a cada passo, avança contra o canto dos cucumbas, ave imaginária e agoirenta, anunciadora de maus presságios.

Mas Mé Flindó, apesar da sua condição de temente, ignora e avança contra tudo em busca do que aí está para vir. Não chega sequer a haver essa ideia de que seja a esperança o que o impele na sua ida à cidade onde está para se receber em festa a Independência.

Na realidade, Mé Flindó dá-se a ver como uma cabeça cansada da vida, presa a um corpo fustigado pela colonização. É portanto saber o verbo cínico que o move, mais do que a esperança substantiva. Mé Flindó quer saber mas sem nada esperar. Porque nada muda, a não ser a mão do poder. E é através da sua personagem que nos vamos apercebendo de que nada está nas mãos do homem e da mulher comuns. A utopia revolucionária é uma escada que apenas se sobe com sapatos.

Tudo se passa acima dos povoados feitos de terra e cultivo. O futuro é desenhado pelas elites do movimento anticolonial, a maquinaria pesada do futuro que comanda. E o povo? O povo há que mantê-lo sossegado. E só.

No prefácio, diz Vitor Amaral de Oliveira que “num fugaz, mas bem organizado apontamento narrativo, Tomás Medeiros não deixou de fora nenhum dos actores que fizeram o tempo da descolonização e da independência: o colono bom e o colono mau, a igreja, o político arrivista, o revolucionário de última hora, o povo incauto. E ficou tudo dito”.
Quando os cucumbas cantam foi editado em 2016, pela althum.com.

Vai ser apresentado a 29 de Maio, na Associação Caboverdeana de Lisboa, por Vitor Oliveira.

Superestrutura e infraestrutura. Diz-nos a teoria que tudo o que não é infraestrutura é superestrutura. E aqui a superestrutura é o próprio Marx acenado pelas elites revolucionárias ao lado de Lenine, Estaline e Mao. Nomes atirados a um povo que, sem o saber de forma académica, põe a sua esperança nas mudanças da infraestrutura, as forças e as relações de produção. A sua parte da propriedade. Poderiam mesmo ser senhores de si mesmos?

Tomás Medeiros conviveu com os grandes dirigentes africanos do mundo português: Amílcar Cabral, Agostinho Neto ou Marcelino dos Santos. Seria em Angola um dos fundadores do MPLA e em São Tomé e Príncipe dirigente do MLSTP. Sem soluções para revitalizar a luta anti-colonialista no arquipélago de São Tomé, esteve envolvido nos movimentos que combatiam no continente, como médico militar do MPLA.

Este livro - curto mas apenas no número de páginas - surge pois como uma crítica cerrada aos movimentos que frustram o povo enganado e sempre à espera de boas novas que não chegam. Porque “os que estão no topo da pirâmide habitam no seu próprio país como os estrangeiros habitam numa colónia. Os seu hábitos, a língua, a cultura são de importação”, explicou Mé Flindó com palavras de Bakunine aos vizinhos que nele buscaram a chegada da Independência. Sempre com os cucumbas à espreita.
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