Dilma censurada

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador Antena 1 de Assuntos Internacionais
Ser conivente com o que está a acontecer no Brasil é sinónimo de não levar a sério uma das maiores democracias do mundo Ueslei Marcelino - Reuters

Começou ontem o “julgamento” de Dilma Rousseff no Senado brasileiro. Esta é a última etapa de um processo desencadeado em Abril e que irá, muito provavelmente, culminar com a sua destituição. Nesta fase final do impeachment já é possível concluir que tudo não passou de uma moção de censura num sistema político que não o permite.

A moção de censura é uma ferramenta típica dos sistemas parlamentaristas ou semipresidencialistas e que tem justificação na dependência do Governo em relação ao Parlamento. É um instrumento que não carece de qualquer justificação não política. Em regra, nos sistemas presidencialistas não existe esta relação entre Governo e Parlamento e a única forma de o poder legislativo destituir o executivo é através do impeachment, previsto em alguns ordenamentos jurídicos para enfrentar a prática de crimes pelo Presidente. O seu objectivo é evitar que um órgão eleito directamente (Presidente) seja julgado por um órgão sem eleição directa (por exemplo, o Supremo Tribunal). Tendo o Parlamento uma legitimidade idêntica à do Presidente, fica salvaguardado o carácter democrático do sistema.

Uma larga maioria dos argumentos utilizados pelos partidários da destituição, desde deputados e senadores a comentadores e militantes, provam que este processo foi político. A prática de crimes de responsabilidade (pedaladas fiscais) foi meramente instrumental e é um tema secundário em todo o debate. O encadeamento de factos que irão conduzir à destituição de Dilma Rousseff expõe ainda de forma cabal os profundos problemas estruturais que afectam o sistema político brasileiro.

  • O processo é aberto pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, no momento em que os representantes do Partido dos Trabalhadores (PT) na Comissão de Ética permitem que avance o processo de cassação do seu mandato. O próprio Cunha admitia, no início de Dezembro, que poderia utilizar o impeachment como retaliação. Cunha é um político comprovadamente corrupto.
  • A tomada de decisão dos deputados, na abertura do processo contra Rousseff, teve pouco que ver com as “pedaladas fiscais”. A prová-lo estão as alegações dos deputados no momento da votação. Grave não é o ridículo de muito do que foi dito nessa primeira votação, mas a demonstração clara de que a maioria dos deputados não estava preocupada com o eventual crime.
  • Segundo a ONG Transparência Brasil, 58,7% dos deputados e 59,3% dos senadores são citados em processos judiciais (incluindo no Tribunal de Contas). Uma extrapolação simples será suficiente para concluir que muitos dos que votaram favoravelmente e que demonstraram a sua indignação com a Presidente não estão a ser coerentes com o seu próprio comportamento.
  • Michel Temmer, quando entrou em funções como Presidente da República interino, nomeou imediatamente um novo executivo e procedeu a alterações profundas nas políticas do Governo. Houve uma ruptura clara com a linha até aí seguida por Dilma Rousseff. Caso estivéssemos de facto perante um julgamento também estaríamos perante a incerteza do resultado final e ao Presidente interino caberia liderar um Governo de gestão até ao desfecho do processo.

Ser conivente com o que está a acontecer no Brasil é sinónimo de não levar a sério uma das maiores democracias do mundo. Em 1998, no âmbito da tentativa falhada de impeachment a Bill Clinton, a generalidade da opinião publicada europeia ergueu a sua voz contra um processo que era marcadamente político e pessoal. Em 2016, a apatia generalizada perante esta situação e a forma como muitos governos já dialogam com o novo poder de Brasília provam que o sistema democrático brasileiro não goza de grande credibilidade.

Quer tudo isto dizer que Dilma e o PT estavam a governar bem o Brasil? Não, bem longe disso. Tudo isto quer apenas dizer que fracasso político não é sinónimo de crime. Na próxima semana, deter-nos-emos sobre tudo isto quando fizermos o balanço do (fracassado) Governo de Dilma Rousseff.
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