Há 70 anos, a primeira antevisão do inferno nuclear

A propaganda de guerra justificou a destruição de duas cidades japonesas com a necessidade de poupar vidas de soldados norte-americanos. Mas a decisão foi tomada por motivos bem diferentes.

RTP /
Estudantes japoneses assistem a um filme sobre a destruição de Hiroshima Toru Hanai , Reuters

O 70º aniversário do infausto 6 de Agosto de 1945 quase coincide com o acordo EUA-Irão, em que os ayatollahs no poder em Teerão renunciam a fabricar a bomba nuclear, em troca do levantamento de sanções que atingiam duramente a economia persa.

Aos Estados Unidos, inflexíveis na pressão para impedir o armamento nuclear do Irão, não calha discutir agora a história da sua própria bomba atómica e das circunstâncias em que foi lançada.Justificações para um genocídio
Na altura, sob a presidência de Truman (Roosevelt, iniciador do projecto, tinha morrido poucos dias antes do fim da guerra na Europa), circularam principalmente estimativas sobre as centenas de milhares de soldados norte-americanos que iriam morrer para concretizar um desembarque e uma ocupação efectivas no Japão.

Ao argumento estatístico juntava-se o argumento ideológico, sobre o alegado fanatismo da resistência japonesa, que elevaria o preço em vidas de soldados norte-americanos. Esse fanatismo parecia simbolizado no derradeiro esforço japonês para afundar navios dos EUA com o lançamento de vagas de kamikazes.

A opinião pública norte-americana via nos próprios kamikazes a personificação do fanatismo. Pouca ou nenhuma informação lhe chegava sobre o verdadeiro fanatismo da cúpula militar japonesa, que embarcava os suicidas à força em aviões carregados de explosivos, apenas com combustível para a ida, e escoltados por caças que os abateriam se tentassem recuar.

Coerente com essa desinformação foi o destino reservado pelos ocupantes norte-americanos ao imperador Hirohito, a quem foi permitido conservar o trono sob a ocupação, quando eram julgados sumariamente e executados criminosos de guerra japoneses de segunda linha.O preço de uma demonstração de força
De qualquer modo, o fanatismo atribuído aos kamikazes facilmente passava a ser atribuído também à população civil japonesa, ignorando que o plano para destruir duas cidades com escassa ou nula importância militar constituía, ele sim, à luz das Convenções de Genebra, um crime de guerra, cometido pela primeira vez com o que hoje se classifica como armas de destruição massiva.

Segundo as leis da guerra, constitui, naturalmente, um crime sacrificar civis para poupar militares.

A bomba de Hiroshima, lançada em 6 de Agosto, há 70 anos, causou imediatamente 70.000 mortos, vindo a morrer nos dias, anos e décadas seguintes pessoas feridas ou contaminadas em número que se calcula em um quarto de milhão.

Três dias depois, outra bomba atómica foi lançada sobre Nagasaki, matando imediatamente 75.000 pessoas -  não só civis japoneses, mas também 13.000 trabalhadores coreanos deportados e escravizados pelo fascismo nipónico."Padrão ético dos bárbaros da Idade das Trevas"
Em todo o caso, testemunhos posteriores indicam que as destruições de Hiroshima e Nagasaki não se destinaram a obter a rendição japonesa, e que eram inteiramente supérfluas desse ponto de vista.

Um desses testemunhos chegou-nos através de Leopold Trepper, chefe da organização de espionagem "Orquestra Vermelha", preso na Lubianka por ordem de Estaline. Aí encontrou Trepper um general japonês, que aguardava o fuzilamento, e que lhe contou ter havido várias diligências japonesas nas semanas anteriores aos bombardeamentos atómicos, pedindo aos EUA que aceitassem a capitulação japonesa. Nenhuma dessas diligências obteve resposta.

Também altos responsáveis norte-americanos manifestaram na altura a sua discordância. O futuro presidente Dwight D. Eisenhower recorda que, ao ser-lhe comunicada em Julho de 1945 a iminência do lançamento da arma atómica, objectou ao secretário de Estado da Guerra, Stimson, que "o Japão já estava derrotado e o lançamento da bomba era completamente desnecessário".

Além disso, acrescentou Einsenhower, "o nosso país devia evitar chocar a opinião pública com a utilização de uma arma cujo emprego já não era, na minha opinião, necessário como forma de salvar vidas americanas. Era minha convicção que o Japão estava, naquele preciso momento, à procura de uma forma de se render com o mínimo de perda da face (...) Os japoneses estavam dispostos a render-se e não era preciso atirar-lhes com aquela coisa horrorosa".

Também o então chefe de Estado Maior das Forças Armadas, almirante William D. Leahy, afirmou: Na minha opinião, a utilização desta arma bárbara em Hiroshima e Nagasaki não teve utilidade material na nossa guerra contra o Japão. Os japoneses já estavam derrotados e dispostos a renderem-se devido ao eficaz bloqueio marítimo e ao bem sucedido bombardeamento com armas convencionais".

A isto acrescentava uma advertência para o futuro: "As possibilidades letais da guerra nuclear no futuro são assustadoras. A minha convicção na altura era que, ao sermos os primeiros a usá-la, tínhamos adoptado um padrão ético comum ao dos bárbaros da Idade das Trevas. Não me ensinaram a fazer a guerra dessa maneira e as guerras não podem ser ganhas a matar mulheres e crianças".

O verdadeiro motivo da decisão foi o empenho norte-americano em fazer uma demonstração de força, que intimidasse os outros vencedores da guerra e, em especial, a União Soviética. Julgando deter, por muitos anos, o monopólio de uma arma decivisa, a Administração Truman não queria limitar-se a experimentá-la secretamente no Novo México.

As populações civis de Hiroshima e Nagasaki pagaram com centenas de milhares de vidas o primeiro acto da chamada Guerra Fria.
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