Merkel repreende Netanyahu por revisionismo do Holocausto

por António Louçã - RTP
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Dir-se-ia que o mundo está virado do avesso: aproveitando uma visita do primeiro-ministro israelita a Berlim, Angela Merkel recordou-lhe que o Holocausto é obra da Alemanha nazi e não dos palestinianos.

O primeiro-ministro israelita dissera ontem, num discurso proferido no Congresso Mundial Sionista, que Hitler não queria exterminar os judeus, e que fora o mufti de Jerusalém, Haj Amin al-Husseini, a dar-lhe essa ideia e a pedir-lhe que optasse por ela.O "puxão de orelhas" de Merkel a Netanyahu
Numa conferência de imprensa conjunta realizada ainda na quarta feira, a chanceler Angela Merkel quis mostrar que considera errado qualquer revisionismo sobre as responsabilidades no Holocausto e afirmou perante Netanyahu, segundo citação do diário britânico The Guardian: "Assumimos as nossas responsabilidades pela Shoah".

Na verdade, Angela Merkel tinha também uma observação a fazer, de maior actualidade política: o Governo de Berlim encara com preocupação os sucessivos alargamentos de colonatos israelitas, ao arrepio do direito internacional.

Uma explicação mais desenvolvida sobre o sentido da assunção de responsabilidades alemãs pelo Holocausto ficou para o porta-voz da chanceler, Steffen Seibert, que declarou: "Falando em nome do Governo alemão, posso dizer que todos nós, alemães, conhecemos precisamente a história do fanatismo racial assassino dos nacional-socialistas que levou a essa ruptura com a civilização que foi a Shoah".

Seibert acrescentou ainda: "Isto é ensinado nas escolas alemãs por uma boa razão. Nunca pode ser esquecido. E não vejo nenhuma razão para mudarmos a nossa visão da história, de qualquer modo que seja. Sabemos que a responsabilidade por este crime contra a humanidade é alemã e muito nossa".
Outros "puxões de orelhas"
Também o secretário de Estado norte-americano John Kerry, de partida para Berlim, onde ia igualmente reunir-se com Merkel, considerou absurdo absolver Hitler de responsabilidades no Holocausto, embora tenha depois mitigado essa censura com a afirmação: "É igualmente absurdo ignorar o papel desempenhado pelo mufti, que era um criminoso" e que, segundo Kerry, "foi instrumental na decisão de exterminar os judeus da Europa".

Em comparação com as críticas mornas de Kerry, continuavam a destacar-se pelo seu vigor as indignadas denúncias de historiadores israelitas, de sobreviventes do Holocausto - um deles com um cartoon que se tornou viral nas redes sociais - e, nesta circunstância, de comentadores alemães.

Um deles, Alan Posener, escreveu no diário conservador Die Welt que a interpretação da história ontem defendida por Netanyahu "tem todas as marcas do oportunismo que define o seu comportamento. Ao exculpar os alemães e ao incriminar um muçulmano, ele espera ganhar amigos entre os islamófobos europeus. A motivação dele é compreensível, mas errada".
Netanyahu e a luta política na Alemanha
A resposta alemã ao revisionismo de Netanyahu deve ser vista no contexto da luta política na Alemanha. Aí tem renascido recentemente o movimento islamofóbico "Pegida" ("Europeus Patriotas Contra a Islamização do Ocidente").

O movimento, que chegara a convocar manifestações com várias dezenas de milhares de participantes, parecera desde há vários meses ter entrado em refluxo, principalmente quando se tornaram conhecidas as derrapagens verbais pró-nazis de algumas das suas figuras de proa.

Contudo, a vaga de refugiados que entretanto começou a chegar à Europa deu novo fôlego ao "Pegida". Numa das suas manifestações mais recentes, o escritor germano-turco Akif Pirinçci, convidado como um dos orardores contra a "invasão islâmica", pronunciou um discurso em que lamentou: "Infelizmente, os campos de concentração estão fora de serviço".

Angela Merkel tem sido, ela própria, visada nas manifestações do "Pegida" em termos que denotam uma quebra com as circunspectas tradições do debate político na Alemanha dos últimos anos: ela e o vice-chanceler social-democrata Sygmar Gabriel foram representados numa forca. A resposta do establishment democrático-conservador alemão a Netanyahu é também uma resposta às vozes mais extremistas do "Pegida".

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