Quando o Charlie Hebdo estica a corda ainda “somos todos Charlie”?

por RTP

O instrumento pode até ser a ironia, mas a instrumentalização do pequeno Aylan Kurdi está a ser o suficiente para condenar este cartoon do Charlie Hebdo. O semanário satírico francês – há um ano alvo de um ataque bárbaro de um comando muçulmano do Estado Islâmico – publica agora um desenho em que usa o pequeno sírio de três anos que apareceu morto numa praia da Turquia depois do naufrágio de um barco de refugiados. E diz: se não tivesse morrido, Aylan seria quando mais velho um violador de mulheres.

A reboque da polémica sobre o que fazer com os refugiados recebidos pela Alemanha depois de uma série de ataques sexuais perpetrados por refugiados na cidade de Colónia, o Charlie Hebdo pegou no pequeno Aylan Kurdi para o transformar num Aylan Kurdi adulto abusador de mulheres.

“O que teria sido o pequeno Aylan Kurdi se tivesse crescido? Um apalpador de rabos” – é este o texto, em tradução literal, que acompanha o desenho de um rapaz a perseguir uma jovem e depois um adulto a perseguir uma mulher.

Na verdade, Aylan, de três anos, afogou-se no final do ano passado na travessia para a Europa juntamente com a sua família: morreu a mãe e o irmão. Apenas o pai sobreviveu. Aylan Kurdi rapidamente passou a ser a imagem da tragédia dos sírios que procuram escapar à morte e a uma guerra que está a destruir o país.

O Charlie Hebdo está habituado aos ataques e defende-se sempre com a ideia de que no humor e na arte tudo vale e de que ceder um milímetro à censura seria desde logo ceder em toda a linha. E, como ninguém, o Charlie Hebdo pagou o preço da liberdade.

A redacção do semanário foi devastada pelo ataque do grupo terrorista que a 7 de janeiro de 2015 pôs a França sob o signo do horror, um ataque que 11 meses depois se repetiria numa sala de espectáculos e por vários pontos da cidade de Paris.

Morreram oito membros do jornal: os cartonistas Charb, Cabu, Tignous, Honoré e Georges Wolinski, o economista Bernard Maris, a colunista Elsa Cayat e o editor Mustapha Ourrad.

O risco de desagradar parece portanto ser uma das linhas editoriais por que se regem as criações do semanário.



Na última semana, o cartoon de um deus assassino e “ainda a mexer” valeu ao Charlie Hebdo novas críticas de vários sectores, inclusive da igreja.
Uma pergunta com resposta
“O que teria sido o pequeno Aylan Kurdi se tivesse crescido? Um apalpador de rabos”. Com a questão dos abusos e das violações na ordem do dia de uma Europa que não tem grande ideia sobre o que fazer com os refugiados que chegam do Norte de África e do Médio Oriente, principalmente da Síria, o assunto acabou por não passar ao lado da equipa do Charlie.

A Alemanha enfrenta neste momento a possibilidade de fazer marcha atrás na sua política para os refugiados e enviar de volta uma boa parte destes migrantes forçados, aproveitando a onda de críticas que estão a provocar os abusos da noite de fim do ano em Colónia.

Face a este elemento, o desenho e a inscrição relativa a um Aylan Kurdi mais velho no papel de abusador pode ter outra interpretação: o jornal adverte para a classificação cega dos refugiados, como se qualquer um fosse à chegada à Europa um violador em potência (ou um terrorista em potência).

Entretanto, fazer aquela pergunta e fornecer a resposta está a valer ao Charlie Hebdo uma reacção negativa no Twitter, acusando a redacção de racismo e xenofobia.



Há ainda aqueles que entendem que não será bem assim. Continuam a valorizar mais a liberdade de expressão, doa a quem doer.
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