“Sobrevivente designado”. E se fosse verdade?

por Ana Sofia Rodrigues - RTP
Kiefer Sutherland e Natascha McElhone durante a apresentação de "Designated Survivor" Mario Anzuoni - Reuters

É a nova série da ABC, que estreou agora também em Portugal. “Designated survivor” ou “sobrevivente designado” traz de novo para os écrans Kiefer Sutherland, herói da série 24. Agora, não é agente operacional contra o terrorismo, mas sim um secretário de Estado da Habitação e Desenvolvimento Urbano que se vê de repente como Presidente depois de um atentado. Surreal? Nem por isso. O “sobrevivente designado” é uma figura legal e real nos Estados Unidos. E até houve um lusodescendente que poderia ter sido o substituto de Barack Obama, caso os EUA fossem abalados por uma tragédia.

Tom Kirkman presta juramento para assumir o cargo de Presidente dos EUA ainda de ténis e camisola de capuz. Um ataque terrorista durante o discurso do Estado da União mata em simultâneo Presidente e todos aqueles que lhe poderiam suceder por lei. O cargo fica entregue ao secretário de Estado da Habitação e Desenvolvimento Urbano, aquele que tinha sido escolhido como “sobrevivente designado” para esse momento. Um político que, por acaso, até tinha sido demitido do cargo nesse mesmo dia.

A trama da série parte desta combinação de fatores, em que o ator Kiefer Sutherland dá corpo ao Presidente. Uma teoria da conspiração da máquina cinematográfica? Neste caso, a realidade serve a ficção.

A figura legal de “sobrevivente designado” existe de facto. Uma espécie de presidente para o pós-"Apocalipse". Um indivíduo que está apenas a uma enorme catástrofe de se tornar Presidente.



O "sobrevivente designado" surgiu na altura da Guerra Fria, perante as primeiras ameaças de ataque nuclear. Visava garantir a sucessão presidencial em caso de um evento catastrófico numa ocasião em que estivessem presentes as mais altas figuras de Estado, aquelas que são também as eventuais substitutas do Presidente. Como o discurso do Estado da União ou uma tomada de posse presidencial, altura em que as figuras de topo do Estado estão publicamente ao lado do Presidente.
Por algumas horas, este passa a ser um dos homens mais bem guardados no mundo.
O designated survivor é um indivíduo, normalmente de “ranking” mais baixo a nível político na cadeia de sucessão presidencial, nomeado pela Casa Branca, que durante esses momentos estratégicos é isolado em local secreto, protegido pelos serviços secretos, pronto para tomar conta das rédeas do país se todos acima dele na linha de sucessão presidencial morrerem. Como poderia até acontecer se houvesse um ataque terrorista.

Terminada a cerimónia ou evento em causa, o "sobrevivente designado" volta à vida normal e pode regressar a casa.

A identidade deste escolhido é mantida secreta até ao dia do evento em causa que é preciso salvaguardar.
Figura da Guerra Fria
Esta prática terá começado nos anos 60, de acordo com alguns historiadores, fruto da Guerra Fria e de um mundo dividido em dois blocos em tensão constante. No entanto, os escolhidos só passaram a ter registo público a partir dos anos 80. Houve tempos em que a prática passou a ser envolta em descontração porque os tempos eram mais pacíficos. Houve até quem tivesse organizado uma festa de pizza na Casa Branca, diz a ABC NEWS.



Com os ataques terroristas do 11 de setembro, as coisas tornaram-se mais sérias. Hoje em dia, o sobrevivente designado tem nível de segurança presidencial durante esse tempo, é escoltado para um local secreto, um bunker, uma montanha, um avião ou instalação militar distante, por exemplo, acompanhado por elementos dos serviços secretos e, dizem, acompanhado com uma mala com os códigos secretos de lançamento de ogivas nucleares. E, vários dias antes, recebe uma espécie de formação intensiva de como ser Presidente. Pormenores, não se sabem assim tantos, até porque quem passa por esse trabalho não pode revelar muito do que se passou.

Tal como o Presidente, o designated survivor tem de ter mais de 35 anos e ser um cidadão nascido nos EUA. Membros do Gabinete que não nasceram nos Estados Unidos não são elegíveis.
Lusodescendente sucederia a Obama
Em 2014, durante o discurso do Estado da União, se algo gravíssimo contra o Presidente Obama e os seus sucessores acontecesse, poderia ser um descendente de açorianos a ocupar a Sala Oval.

Ernest Moniz, físico nuclear, secretário de Estado da Energia, neto de açorianos tanto do lado da mãe como do pai, famoso pelo penteado estilo Oscar Wilde, foi o homem escolhido para, em janeiro de 2014, estar a assistir ao discurso do Presidente, ao longe, em segurança, esperando que nada de muitíssimo grave se passasse no Capitólio. Moniz não era propriamente um iniciado político, tendo já servido na Administração Clinton.

Foto: Reuters - Ernest Moniz ao lado de John Kerry

Ernest Moniz era então a 12ª pessoa na linha de sucessão. Este ranking é determinado por uma lei de 1947, a Presidential Succession Act. Uma listagem de sucessão bem mais exaustiva do que a que qualquer estudante norte-americano aprende na escola de que é o vice-presidente que sucede ao presidente em caso de morte ou outra incapacidade. Como em Portugal sabemos que o Presidente da República é substituído pelo Presidente da Assembleia da República.

Mas nem sempre o designado se tornará Presidente. Como? Se um outros elemento mais alto na linha de sucessão sobreviver ou não estiver no local atacado, será ele a assumir o cargo de Presidente.

Por exemplo, em 2010, a então secretária de Estado e atual candidata presidencial Hillary Clinton estava em Londres no momento da cerimónia do Estado da União. No entanto, como a sua localização era pública, houve um “sobrevivente designado”, de ranking mais baixo. Se ambos sobrevivessem a um qualquer ataque, seria Clinton a jurar como Presidente.
Quem escolhe?
Quem escolhe, de facto, o “sobrevivente designado”? Alberto Gonzalez, antigo Procurador-geral norte-americano e designated survivor em 2007 não consegue responder, embora imagine que a decisão seja feita pelo Presidente e seus conselheiros tendo em conta a responsabilidade que poderá advir da escolha.

Alberto Gonzalez foi o escolhido em 2007 (o Procurador-geral é o 7º na linha de sucessão), na altura do discurso do Estado da União com George W. Bush como presidente, seis anos depois dos ataques terroristas do 11 de setembro de 2001 e tendo o procurador-geral sido conselheiro do Presidente em duas guerras nessa Administração.

Deram-lhe várias opções sobre onde estar no momento do discurso e Alberto Gonzalez escolheu estar a bordo de um avião. Com ele, representantes dos maiores departamentos e agências do país, cheios de pastas com protocolos e procedimentos a seguir caso uma catástrofe ocorresse.

Apesar deste passado, Gonzalez confessa em entrevista que no momento em que vi Bush a discursar sentiu o peso do momento e da função: “De repente, pensei: ‘Meu Deus, se algo acontecer em Washington, terei eu e os restantes elementos presentes naquele avião a capacidade de governar uma nação ferida?’”.

Sim, porque no caso de ter de assumir o cargo de Presidente, terá de o fazer numa situação extrema, causada por algo que terá dizimado o topo de uma das mais poderosas Nações do mundo. Um pós- Armageddon ou um pós-Apocalipse, por assim dizer. Provavelmente, estaria de imediato em guerra.



“É uma oportunidade que só acontece uma vez na vida”, relata Gonzalez, que escreveu um livro onde descreve todos os momentos importantes que atravessou. É claro que, no caso desta função que desempenhou durante horas, são decerto mais os pormenores classificados do que aqueles sobre os quais pode falar publicamente.

Uma outra história data dos tempos mais descontraídos antes dos ataques terroristas às Torres Gémeas. Neste caso, 1997, quando o responsável da Agricultura Dan Clickman foi o escolhido para o cargo. Naquela noite do discurso do Estado da União foi à casa da filha em Nova Iorque, rodeado por uma segurança apertada. Logo que o Presidente Clinton terminou a cerimónia e estava de volta a um lugar seguro, os agentes desapareceram e Glickman, que estava a caminho de um jantar tardio, acabou no meio da rua, sozinho, à chuva sem conseguir encontrar um táxi. (Washington Post)
"Jack Bauer" agora Presidente
Ao contrário do designated survivor Kiefer Sutherland na ficção, nenhum dos verdadeiros sobreviventes designados tiveram alguma vez de levar a cabo a missão até ao fim. A nova série televisiva que agora pode também ser acompanhada em Portugal, tenta imaginar os acontecimentos que teriam lugar se o inimaginável acontecesse.

O criador da série David Guggenheim confessa-se obcecado pelos protocolos em Washington e confessa: “Está inerente uma grande história de um personagem quando a vida de alguém muda num instante, um homem vulgar em circunstâncias extraordinárias”.

Não se pense que a série é totalmente fiel ao que podia de facto acontecer. Há efeitos dramáticos a considerar. Por exemplo, na série há um momento em que o designated survivor abre a janela e vê a explosão no Capitólio. Na realidade, isso não poderia acontecer. Ele estaria bem mais longe do local, provavelmente a umas duas horas de distância.

Depois de ter sido durante oito temporadas Jack Bauer, um agente da Unidade Contraterrorismo, Kiefer Sutherland volta à atualidade política, por assim dizer. Agora como Presidente dos EUA, enfrentando as feridas de um ataque terrorista.
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