Adoção por casais do mesmo sexo e lei do aborto vetadas por Cavaco

por Ana Sofia Rodrigues, Carlos Santos Neves - RTP
Questionado no domingo, após votar, sobre o fim dos seus mandatos em Belém, Cavaco Silva faria questão de lembrar que só deixaria a Presidência a 9 de março Paulo Novais - Lusa

O Presidente da República anunciou esta segunda-feira ter aplicado o poder de veto ao diploma que abria caminho à adoção por casais do mesmo sexo e às alterações introduzidas na lei da interrupção voluntária da gravidez. Em ambos os casos, Cavaco Silva defende a realização prévia de debates públicos. Estas decisões são divulgadas no portal da Presidência um dia depois das eleições para Belém. E já mereceram críticas por parte do PS.

Treze pontos estruturam a argumentação que o ainda Chefe de Estado remeteu ao presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, para justificar o veto ao decreto que “altera normas relativas à adoção por casais do mesmo sexo”.O Presidente cessante dá como “desprovido de sentido” o argumento “segundo o qual a solução normativa agora aprovada resultaria de uma imposição constitucional ou legal”.

Cavaco Silva começa por lembrar que quer o regime da união de facto, quer o regime do casamento de pessoas do mesmo sexo “excluíam a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo”.

“Sem prejuízo da controvérsia que a aprovação desses diplomas gerou, esta opção resultou da ponderação que foi feita pelo legislador dos diversos interesses em presença e, muito em especial, da imperiosa necessidade de salvaguarda, em todas as circunstâncias, do superior interesse dos menores”, prossegue o Presidente.

Sónia Silva, Rui Magalhães - RTP

“Na verdade, é consensual que, em matéria de adoção, o superior interesse da criança deve prevalecer sobre todos os demais, designadamente o dos próprios adotantes”, continua o texto, antes de acrescentar que “o interesse da criança é a linha-mestra condutora que deve guiar não apenas as opções legislativas sobre adoção como a própria decisão dos processos administrativos a ela respeitantes”.

Acentuando a mesma ideia, Cavaco sublinha que “o pressuposto de que parte o Decreto em causa é o da existência de uma discriminação entre casais de sexo diferente e casais do mesmo sexo no que respeita à adoção”. Para insistir: “Ora, como se viu, o instituto da adoção deve reger-se pelo superior interesse da criança”.
Princípio da igualdade
No entender de Belém, que se apoia mesmo na jurisprudência do Tribunal Constitucional, “o princípio da igualdade não impõe necessariamente a solução agora consagrada”.

“A igualdade de tratamento entre casais de sexo diferente e do mesmo sexo é matéria, essencialmente, do domínio da liberdade de conformação do legislador, não podendo daí retirar-se uma qualquer composição constitucional”, vinca o Presidente da República, lançando mão dos acórdãos do Constitucional 359/2009 e 212/2010.
Cavaco recua ao “amplo debate” sobre a coadoção, “a qual, embora controversa, possui um conteúdo muito mais circunscrito do que o da presente iniciativa legislativa, uma vez que se limita aos casos de adoção pelo cônjuge relativamente a laços paternais pré-existentes”.
Por outro lado, argumenta o Presidente que estaria “por demonstrar em que medida as soluções normativas agora aprovadas promovem o bem-estar da criança e se orientam em função do seu interesses”. Neste ponto, o contraforte de Cavaco é “uma exposição sobre o Decreto em causa” remetida a Belém por “um grupo de reputados juristas e professores de Direito”, segundo os quais o regime foi adotado “com base em fundamentos descentrados da tutela jurídica destas crianças”.

“No decurso da anterior legislatura foi iniciado o procedimento legislativo relativo à coadoção, o qual envolveu perto de vinte audições de associações e especialistas, não tendo sido concluído o referido processo”, recorda adiante Aníbal Cavaco Silva.

“Contrariamente ao que sucedia no caso da coadoção, o Decreto em apreço introduz uma alteração radical e muito profunda no nosso ordenamento jurídico, permitindo a adoção plena e irrestrita a casais do mesmo sexo, o que sempre havia sido excluído pela legislação em vigor, mesmo naquela que, sublinhe-se, aprovou a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo”, reforça.

Cavaco Silva conclui a argumentação a sustentar que “importa assegurar” um “amplo e esclarecedor debate público” antes da entrada em vigor de “uma alteração tão relevante numa matéria de grande sensibilidade social”.
“Adequada ponderação”
No que toca ao diploma sobre a interrupção voluntária da gravidez, Cavaco Silva opta por não promulgar o Decreto nº 6/XIII que revogaria duas leis existentes de 2015. Uma dessas leis, por sua vez, introduzia alterações a uma norma legal de 2007 sobre a exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez.

O atual diploma viria, de acordo com o Presidente da República, “diminuir os direitos de informação da mulher grávida” que estivesse a ponderar interromper a gravidez. No documento onde Cavaco justifica o veto, lê-se ainda que o atual decreto “elimina a obrigatoriedade do acompanhamento técnico especializado durante o período de reflexão”, algo que estava consagrado na lei de 2015.

“Considera-se a presente alteração um retrocesso na defesa dos diversos valores e interesses em presença, porquanto reduz a informação prestada ao longo do processo de decisão da grávida, devendo ser essa informação (…) a mais abrangente possível como forma de reforçar justamente a liberdade de decisão da mulher”, lê-se no documento da Presidência.

Cavaco Silva lança ainda críticas ao processo, dizendo que esta recente alteração legislativa foi “realizada sem o devido debate público e uma adequada ponderação”. O Presidente da República diz ainda que, ao devolver o diploma ao Parlamento, permite que os deputados possam fazer, “caso o entendam, uma auscultação de entidades ou personalidades com relevância neste domínio e uma mais amadurecida reponderação” sobre as soluções legislativas a adotar “numa área de grande sensibilidade política, ética e social”. Argumentos que aparecem corroborados por acórdãos do Tribunal Constitucional e por exemplos de normas existentes noutros países, como a Alemanha ou Espanha.


Nesta argumentação, Cavaco Silva elenca os recados que já anteriormente tinha remetido à Assembleia da República aquando da lei de 2007 e que apontavam para esta necessidade que o Presidente destaca sobre o reforço dos direitos de informação da mulher grávida como “extremamente importante ou até mesmo essencial, para que a decisão seja formada, seja em que sentido for, nas condições mais adequadas”.

Por outro lado, o Presidente diz que o atual decreto iria fazer regressar um impedimento que a lei de 2015 tinha feito desaparecer: a norma que impedia os médicos ou demais profissionais de saúde de saúde que invoquem a objeção de consciência de participar na consulta de aconselhamento.

De acordo com Cavaco Silva, “é reintroduzido na ordem jurídica um impedimento que não deixará de ser percebido como uma desconfiança relativamente à isenção do profissional de saúde objetor de consciência”.
“Obstáculos”
Numa primeira reação a estas decisões de Cavaco Silva, o vice-presidente da bancada do PS Pedro Delgado Alves veio dar por garantido que os diplomas vetados voltarão a ter viabilização parlamentar.“Portugal está a caminhar no sentido certo em relação a esta matéria”, reagiu Pedro Delgado Alves, vice da bancada parlamentar do PS.

“Não podemos deixar de lamentar que o Presidente da República, na reta final do seu mandato, continue empenhado em criar obstáculos e não em resolver questões de direitos fundamentais. Estamos perante vetos que não são definitivos e, por certo, a Assembleia da República vai ultrapassá-los”, redarguiu o deputado socialista.

Em declarações citadas pela agência Lusa, Pedro Delgado Alves classificou mesmo de “inexplicável” o arrazoado do Presidente no que toca à adoção por casais homossexuais.

“Pelos vistos, passou ao lado de Cavaco Silva todo o debate que foi feito publicamente sobre esta questão. Por isso, ignora até as evidências científicas que justificam a evolução constante no diploma, já que ficou demonstrado que a solução proposta é a que melhor protege os direitos das crianças”, reprovou o dirigente do PS.

Na leitura dos socialistas, o Presidente da República insiste em acantonar-se “em quatro ou cinco posições, quando há cada vez um maior consenso internacional contrário a esse tipo de convicções”.
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