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Portugal, Síria, ONU e a Europa: Durão Barroso e António Guterres explicam o nosso mundo

por Christopher Marques - RTP
Durão Barroso e António Guterres exerceram responsabilidades de relevo: um na Europa, outro nas Nações Unidas. Voltaram a encontrar-se para conversar sobre os grandes temas da atualidade. Reuters (2005)

Barroso perdeu contra Guterres em 1999. Viria a suceder-lhe como primeiro-ministro em 2002. Uma era de rivalidades políticas e outras divergências. Eram outros tempos e como tal havia também outras vontades. Depois da projeção internacional dos últimos anos, Guterres ambiciona agora chegar ao mais alto cargo das Nações Unidas, enquanto Barroso aparece atualmente afastado das lides políticas. Os dois encontraram-se esta segunda-feira para uma conversa promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e pela RTP.

Afinal, que mundo é este? A pergunta que está tantas vezes na cabeça de todos foi o mote para esta conversa única na televisão portuguesa. Um debate entre dois portugueses que desempenharam funções internacionais de grande relevância.

Durante mais de uma hora, o ex-presidente da Comissão Europeia e o ex-alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados apresentaram as suas ideias quanto ao conflito sírio, às Nações Unidas, aos donos do mundo e à construção europeia.

Guterres e Barroso tiveram ainda tempo para olhar para os portugueses. Para a forma como somos vistos lá fora e para a solução governativa que saiu das últimas eleições legislativas. Este foi aliás o ponto de discórdia entre os dois, com Barroso a criticar o facto de o Executivo ser apoiado por partidos “contra o consenso europeu”.
Quem manda no mundo?
Para Guterres, este é o “cerne do problema” que motiva a multiplicação de conflitos e explica a dificuldade em fazê-los parar.

Afinal, “as relações de força no mundo de hoje deixaram de ser claras”. Depois de um mundo dominado pelos Estados Unidos e pela Rússia, passou-se a um mundo dominado somente por Washington.

Mas, depois, tudo mudou. Guterres aponta que, agora, não há um modelo nem "bipolar", nem "unipolar".

“É um mundo relativamente caótico” onde a “impunidade e a imprevisibilidade” têm tendência a multiplicar-se, aponta o ex-primeiro-ministro socialista. Para Durão, a resposta à pergunta quem manda no mundo "é ninguém”.


Durão Barroso recusa a ideia que sejam os grandes grupos financeiros que dominem o planeta, e garante que “não há uma conspiração global”.

Os grandes grupos “também se queixam de não ter a influência que gostavam de ter”, afirma o social-democrata. Em “teorias da conspiração”, Durão não acredita.

“Não acredito na tese de que os governos do mundo estejam coligados para proteger o sistema financeiro", deixa claro o ex-líder do executivo comunitário.
Modernizar a ONU

Candidato a secretário-geral das Nações Unidas, Guterres considera que é precisa uma modernização das estruturas, embora aponte que esta não é uma missão fácil.

“Sessenta anos depois, temos praticamente as mesmas Nações Unidas daquela altura”, constata o ex-alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados. No entanto, Guterres apresenta receios face ao mundo em que atualmente vivemos.

“Se fizéssemos hoje uma convenção de 1951 ou se elaborássemos, à escala global, uma Declaração Universal dos Direitos do Homem, arriscávamo-nos a ter documentos menos progressistas do que aqueles que temos”.

Durão Barroso, que garante apoiar a candidatura de Guterres ao topo das Nações Unidas, exclui uma candidatura ao lugar.

Sobre a ONU, Durão defendeu que as Nações Unidas são muito complexas e que quem manda na organização é o Conselho de Segurança, que, por sua vez, é controlado pelos membros permanentes.

“É um bocadinho semelhante ao que se passa com a União Europeia. A União Europeia é aquilo que os Estados também quiserem que ela seja. As Nações Unidas são aquilo que os países querem que elas sejam”, garante.
Acabar com o conflito sírio
Cinco anos depois, o conflito na Síria permanece. Durão considera que para acabar com esta guerra é essencial que os Estados Unidos e a Rússia, o Irão e a Arábia Saudita se entendam, bem como a Turquia.

“A Rússia está com uma agenda própria, bem clara, na Síria. Ao mesmo tempo que o Ocidente não tinha, nem tem, uma verdadeira política”, critica o ex-presidente da Comissão Europeia. Perante este cenário, uma questão se impunha: Vladimir Putin é confiável?


“É óbvio que, hoje em dia, ele tem uma agenda de conflito e confronto. É confiável no sentido em que sabemos o que ele quer. Mas o que ele quer não é o que queremos”, garante.

António Guterres considera que é preciso mostrar que as guerras atuais são guerras em que todos perdem e ninguém ganha. Para o candidato a secretário-geral, é preciso fazer compreender a todos que este é um caminho em que todos estão a perder.
“Europa tem costas largas”
Os últimos meses têm sido conturbados para a União Europeia, com sucessivas crises - a Grécia, os refugiados e o Reino Unido. As críticas a Bruxelas têm-se multiplicado, com Durão a apontar que “a Europa tem as costas largas”.

Durão sublinha que já não está na política e, portanto, o "nível de sinceridade tem aumentado todos os dias". “Não tenho os constrangimentos que tinha quando ocupava as funções que ocupei”, explicita, antes de atacar.

“Os Governos gostam de fazer a europeização dos fracassos e a nacionalização do sucesso. Quando as coisas correm bem, o mérito é nosso. Quando as coisas correm mal, é de Bruxelas”, exemplifica, antes de recordar: “mas quem é que toma decisões em Bruxelas?”.


O ex-primeiro-ministro social-democrata salienta as diferenças da Europa, recorrendo a uma célebre expressão de Umberto Eco: "A tradução é a língua da Europa". Posto isto, Durão não tem dúvidas.

“Não somos e não seremos num futuro próximo os Estados Unidos da Europa”.

António Guterres também concorda que há uma tendência para “atribuir à Europa a responsabilidade pelas coisas que correm mal”. Um aspeto que Guterres diz tornar difícil o aprofundamento da integração europeia.

“Há um défice de solidariedade terrível entre os Estados europeus. Não se põem de acordo para um caminho comum em solidariedade” para responder aos desafios.

Mesmo assim, Guterres considera que “isto não vai por em causa a União Europeia”. “Quando há uma questão verdadeiramente difícil, no último momento, ela é resolvida”, constata o socialista.
Portugal visto de fora
Durão Barroso aponta que Portugal ainda é visto lá fora como “um país pobre” e “atrasado” no contexto europeu.

“Os portugueses são vistos como simpáticos, trabalhadores mas… às vezes há nisto alguma condescendência que me magoa enquanto português”, admite.

O ex-primeiro-ministro considera que há insuficiências grandes, nomeadamente na capacidade de organização. “É um dos problemas enormes que temos como país: falta de organização, de pontualidade”.

Durão lamenta ainda a grande diferença entre classes sociais.

António Guterres considera que Portugal viveu um período de expansão imperial “extraordinário”. Mas, depois, “teve dificuldades em encontrar-se consigo próprio”. O ex-chefe de  Governo elogia o povo "extraordinário" e coloca críticas nas "elites".

“As elites portuguesas não estão à altura do povo que somos”, afirma. “Esta questão de liderança, ao longo de muitas décadas, é responsável por este atraso relativo que os outros notam e que muitas vezes nos atiram à cara”.

No entanto, Guterres elogia o povo português por não ceder aos problemas de identidade e aos partidos extremistas e xenófobos.

Sobre o atual Governo português, António Guterres e Durão Barroso não apresentaram a mesma opinião. Barroso sublinhou o facto de o Executivo de António Costa ser apoiado no Parlamento por partidos “contra o consenso europeu”.

Guterres elogiou o facto de estes partidos terem aceite que o Executivo mantenha “fidelidade” aos compromissos europeus e atlânticos.
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