Enfermeiras Porto - Ilustração Portuguesa Hemeroteca Municipal

As portuguesas na Frente

O eclodir da guerra levou à criação de vários movimentos de apoio aos soldados e feridos de guerra, assim como às suas famílias. Logo no início, a Comissão feminina “Pela Pátria”’ foi uma das mais notáveis, pelo lado republicano e laico. Do lado aristocrático católico, formou-se a “Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra”. Houve cooperação entre ambas, como na campanha “Venda da Flor”, que recolheu importantes fundos, apoiando sobretudo a Cruz Vermelha e a Cruzada das Mulheres Portuguesas”, cuja atividade e financiamento eram coordenados através do jornal “O Século”. O ativismo escondia ainda uma luta feroz pela influência sobre a mentalidade e os hábitos na sociedade portuguesa. Que teve o seu corolário na profissionalização da enfermagem feminina.

É desse desejo feminino de luta e de auxílio que fala este novo postal, como outros, ficcionado. Uma jovem menina quer ser enfermeira e partir para França ajudar os feridos de guerra. E não percebe que atrás disso se trava uma outra luta, feminista, política e religiosa.



Em Portugal, muito antes de eclodir a Primeira Grande Guerra, a formação de enfermeiras profissionais era já defendida, sobretudo por feministas e sonho antigo de mulheres ligadas à maçonaria portuguesa. Era preciso, defendiam, arrancar à Igreja Católica um pelouro que esta dominava há centenas de anos através de diversas ordens religiosas, denominadas com certo desdém as “irmãs de caridade…”. 

A investigadora Doutora Isabel Lousada estudou de perto esse conflito nas suas investigações que disponibilizou na internet sob o nome “Pela Pátria: A Cruzada das Mulheres Portuguesas”.

Isabel Lousada lembra o exemplo de Florence Nightingale e os objetivos dos movimentos republicano e maçónico, que assumiam desde o início a separação de Igreja e do Estado, refletindo que, entre os diversos objetivos políticos, a formação de enfermeiras laicas era uma prioridade – “embora correndo o risco de parecer fragmentada a centralidade da laicização nunca foi afastada, embora reconheçamos que tenha sido mais acentuada essa luta em determinados momentos” refere a autora.

A História do papel feminino desses anos em Portugal beneficia tradicionalmente as mulheres republicanas e livre-pensadoras, ou maçons. No entanto, também outras mulheres, monárquicas e católicas, se evidenciaram em obras de apoio aos soldados e às suas famílias. E muitas delas se empenharam igualmente na formação de enfermeiras laicas, como refere Natividade Monteiro, investigadora da Universidade Aberta, no blog “A Tertúlia da Diáspora”.

Com os esforços de todas acabou por ser possível formar os primeiros cursos de Enfermagem fora da alçada das Congregações Religiosas Femininas – das quais, até por força da perseguição religiosa, restavam pouco mais do que estruturas mínimas em Portugal, de acordo com a historiadora Maria Lúcia de Brito Moura.

Do sonho laico à Cruzada


A pesquisadora Doutora Isabel Lousada refere que foi à médica e livre-pensadora Sofia Quintino (1878-1964) que coube cumprir, “mesmo nunca tendo militado na Liga Republicana de Mulheres Portuguesas ou no Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas”, “um desiderato senão maçónico, pelo menos para maçónico, visando descristianizar a atividade ligada aos cuidados com enfermos”. 

“Como todos sabem, a falta das enfermeiras laicas fazia se sentir de há muito, e delas fizemos propaganda durante anos, convencidos como estávamos, e estamos, de que as congreganistas não podem satisfazer por modo algum as exigências desse cargo”, afirmava já a Dr.ª Quintino em 1910 (in “Enfermagem laica”, O Radical, Setúbal, 27 de Novembro).

Só depois da implantação da República o objetivo de formar “enfermeiras habilitadas para as colocarmos nos hospitais, se os médicos nos auxiliassem, em substituição das irmãs de caridade”, foi contudo possível de dar os primeiros passos na laicização.

Para tal foi necessário conjugar os esforços de centenas de mulheres, incluindo cristãs católicas.

É habitualmente referido, neste sentido, o trabalho de Ana de Castro Osório e da sua organização “Pela Pátria”, criada em 1914 formada com Ana Castilho, Antónia Bermudes e Maria Benedita Mouzinho de Albuquerque Pinto, quatro amigas com passado feminista. 

Ana de Castro Osório era uma influente jornalista e defendia a participação de Portugal na Guerra ao contrário, por exemplo, da republicana e pacifista – porque assim o ditava o ideal feminino – dirigente da “Liga Republicana das Mulheres Portuguesas”, Maria Veleda, que acabou contudo por se resignar ao inevitável.

“Pela Pátria” prestou assistência aos soldados mobilizados e foi uma das primeiras instituições em Portugal que tentou organizar as mulheres para o esforço de guerra, fazendo agasalhos que depois enviava para a Frente entre muitas outras atividades. Tentou igualmente mobilizar as entidades civis para auxiliar o esforço, como se depreende desta carta enviada às Câmaras Municipais do país.


Os seus esforços foram depois herdados – assim como a sua presidente, Ana de Castro Osório - pela “Cruzada das Mulheres Portuguesas”, formada em 1916.

Ilustração Portuguesa - Hemeroteca Municipal

Descreve Natividade Monteiro que “o núcleo fundador na nova associação – a “Cruzada” - era constituído por quase uma centena de mulheres da elite republicana, entre as quais se contavam as esposas, filhas e parentes próximas dos membros do governo da União Sagrada com relevo para os do Partido Democrático. Foi a única coletividade que agregou mulheres sem qualquer militância associativa e as velhas ativistas do movimento feminista republicano.” 

A Cruzada das Mulheres Portuguesas “nasceu sob a égide do Governo e teve a sua proteção até ao advento do Sidonismo. As esposas dos governantes e republicanos mais influentes presidiam às comissões e obtiveram benefícios que facilitaram a sua organização e atuação. Foram-lhes concedidos edifícios, a isenção de franquia postal, autorização para uma lotaria patriótica e direitos e garantias nacionais e internacionais que pertenciam exclusivamente à Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, pela Convenção de Genebra,” explica a investigadora.




E vai ser-lhe dada a possibilidade recusada ao movimento católico: a “Cruzada” irá “cumprir a antiga ambição da Liga Republicana de formar enfermeiras, abrindo uma nova profissão de prestígio às mulheres e contribuir para a modernização das estruturas de saúde, começando pela ampliação da rede hospitalar do exército”, escreve Natividade Monteiro.



O ativismo católico e monárquico

A militância cristã católica portuguesa não ficou de braços cruzados, apesar de escarnecida e afastada das luzes da ribalta pela revolução republicana.
É de sublinhar que a Rainha D. Amélia, no exílio, cumpria funções nas enfermarias francesas.


Rainha D. Amélia vestida de enfermeira (Ilutração Portuguesa) - Hemeroteca Municipal

Mal a Alemanha declarou guerra a Portugal a 9 de março de 1916, surgiu a “Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra”, uma associação também inteiramente feminina mas ligada à aristocracia monárquica e ao catolicismo. 

As fundadoras da “Assistência” eram “detentoras de grande poder económico, ligadas à propriedade fundiária, aos grandes negócios e à alta finança”, descreve Natividade Monteiro. “Sempre exerceram a filantropia, a caridade e a beneficência nas associações pias de inspiração cristã. Apesar de estarem alguns anos afastadas do espaço público, com a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, mobilizaram-se, tomaram a palavra e dispuseram-se a agir, procurando restabelecer o lugar e a influência que detinham na sociedade.” 

“Apesar de discordarem do regime político e, quiçá, da política intervencionista do governo da União Sagrada, demonstraram o seu patriotismo ao contribuírem para o esforço de guerra,” refere ainda.

Participaram por exemplo ao lado das mulheres republicanas na iniciativa do jornal “O Século”, a “Venda da Flor”, para arrecadar fundos de apoio às suas diversas obras.


Jaime Cortesão comprando flor (Ilustração Portuguesa) - Hemeroteca Municipal

Maria Lúcia de Brito Moura, na sua obra “Nas trincheiras da Flandres: com Deus ou sem Deus, eis a questão”, (Edições Colibri, 2010) refere que um dos objetivos principais da “Assistência” era “formar enfermeiras que cuidassem dos feridos de guerra.”

Contudo, não o conseguiu de imediato. “O projeto de formar enfermeiras de guerra, acarinhado pelos médicos Tomás de Melo Breyner, Reinaldo dos Santos e Domitila de Carvalho, não vingou por decisão do governo que receava o poder e influência do movimento monárquico e católico. O Ministro do Interior determinou que as candidatas a enfermeiras frequentassem os cursos de enfermagem entretanto abertos pela Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha”, explica Natividade Monteiro.


“Esta instituição já tinha aberto seis cursos de enfermagem no início de 1915 e, após a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, abriu outros tantos, entre Abril e Julho de 1916, em que se inscreveram cerca de 130 mulheres, muitas delas ligadas à aristocracia monárquica, como a Condessa de Ficalho, então com 53 anos. De salientar que grande parte destes cursos foram ministrados pela médica feminista e pacifista Maria do Carmo Lopes, membro da Comissão Central da Cruz Vermelha. Nos três anos de guerra que se seguiram a Cruz Vermelha manteve sempre cursos abertos para suprir as necessidades dos seus hospitais, visto que nem todas as diplomadas exerciam depois a profissão”, acrescenta. 

Recusado pelo Governo o projeto de formação de enfermeiras, a “Assistência” presidida pela condessa de Ficalho, Maria Josefa de Mello (1863-1941), enveredará então por outras vias de assistência aos militares. Entre elas a constituição das Madrinhas de Guerra, que se correspondiam com os militares e faziam chegar notícias às famílias, uma obra depois copiada por outros grupos femininos. O grupo fundou ainda a Casa da Assistência, a Casa Maternal e um Dispensário para assistência médica, medicamentosa e alimentar.

E não desistiu de apostar na formação de enfermeiras, junto da Cruz Vermelha. Maria Amélia Carvalho de Burnay cedeu para tal uma casa à CVP. O chamado Hospital Temporário da Cruz Vermelha foi instalado na Vila de Santo António, na Junqueira, em Lisboa, por uma comissão presidida por Joaquim Salinas Antunes.


Enfermeiras Junqueira (Ilustração Portuguesa) - Hemeroteca Municipal

O projeto contemplava a instalação de oito enfermarias, com uma lotação de 207 leitos, com material cedido pela condessa de Burnay, pela Sociedade da Cruz Vermelha e pelo Ministério da Guerra. O seu primeiro diretor foi Joaquim Augusto Ferreira da Fonseca.

E é aí que serão preparadas as enfermeiras que irão para França com a Cruz Vermelha.


Damas enfermeiras Ambleteuse (Ilustração Portuguesa) - Hemeroteca Municipal

Dois grupos de enfermeiras

Aí e no hospital de Campolide, gerido pela, entretanto formada Cruzada das Mulheres Portuguesas, após cedência do antigo colégio jesuíta de Campolide, pelo Governo, a título precário.

Organizado em 1916, o Instituto Clínico da Cruzada das Mulheres Portuguesas, frequentemente referenciado simplesmente como Instituto da Cruzada, em Campolide, destinava-se à convalescença dos feridos de guerra, funcionando como importante campo de experimentação para a organização do futuro Instituto de Reeducação dos Mutilados de Guerra.


Enfermeiras Campolide (Ilustração Portuguesa) - Hemeroteca Municipal

A partir de 1917 o instituto policlínico possuía ainda um internato para a formação de enfermeiras militares para apoio do Corpo expedicionário Português.

“Em torno do ideal de apoio aos soldados, a CMP tem em Sofia Quintino a obreira capaz de dirigir superiormente os primeiros cursos de enfermagem, de modo a poderem ser preparadas as mulheres que nesse mister pretendessem ir para a frente de combate auxiliando os feridos, servindo os ideais da nação, tal como os entendia Ana de Castro Osório, agora, a sua dirigente” refere Isabel Lousada.

O resultado dos esforços das mulheres portuguesas foi, conclui Natividade Monteiro, a constituição de dois grupos distintos de enfermeiras:


“Parece haver uma clara distinção de classe e de ideologia política entre as enfermeiras da Cruzada e as da Cruz Vermelha. Salvo raras exceções, as primeiras situavam-se na média burguesia enquanto as segundas pertenciam à alta burguesia e algumas tinham fortes ligações à aristocracia, estando estas muito próximas da Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra.,” afirma, citando vários exemplos, incluindo o caso da Chefe das Enfermeiras do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa em Ambleteuse, Maria Antónia Jervis d’Atouguia Ferreira Pinto Basto (1852-1930).

Por seu lado, “as enfermeiras da Cruzada prestaram serviço, sobretudo, nos Hospitais Militares da Estrela e de Belém, no Instituto Médico-Cirúrgico de Campolide e no Instituto de Reeducação dos Mutilados de Guerra. Receberam formação especializada em tratamento e técnicas de reabilitação de feridos graves, sendo louvadas pelo profissionalismo, os cuidados e o carinho dispensados aos mutilados, muitos dos quais se reinseriram social e profissionalmente. Algumas viveram a guerra mais perto das linhas da frente, ao prestarem serviço no Hospital de Recuperáveis de Hendaia e nos hospitais do Corpo Expedicionário Português.”

Umas e outras, contudo, exigiam às suas candidatas um sem número de condições que impossibilitavam a inscrição da maioria das mulheres portuguesas.



Por exemplo, de acordo com o Decreto 3306 da CMP, as candidatas tinham de ter entre 20 e 30 anos de idade – durante a guerra o período foi alargado aos 40 anos- robustez física e a ausência de qualquer doença contagiosa, além de literacia ao nível do exame do segundo grau da instrução primária ou outra reconhecida pela Cruzada. Tinham ainda de ter um bom comportamento civil e uma perfeita dignidade moral. Era dada ainda preferência às candidatas que tivessem prática de enfermagem, fossem estudantes de medicina e soubessem francês e inglês.

Emancipação

De notar que já desde o início da guerra havia mulheres portuguesas a cumprirem funções de enfermeiras em hospitais franceses.

A revista de “O Século” a Ilustração Portuguesa, refere por duas ocasiões esses casos.


Em Biarritz e o menino José Lourenço (Ilustração Portuguesa) - Hemeroteca Municipal

A Primeira Grande Guerra é um marco na emancipação feminina. Com os homens ausentes na Frente, as suas posições nas fábricas e em diversas outras funções foram assumidas pelas mulheres.


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Foi por isso também campo fértil para as feministas mostrarem o valor da mulher e suas capacidades de gestão da vida familiar e social, de intervenção na economia, de trabalhar em todas as atividades e participar nas decisões políticas do país, incluindo através do voto.

O exemplo do voluntarismo e empenho das mulheres dos países beligerantes, belgas, francesas, inglesas e russas, que trabalhavam no campo, nas fábricas, nos serviços e no apoio aos exércitos, chegavam a Portugal através da imprensa e serviam de incentivo para a mobilização das portuguesas.




Ilustração Portuguesa - Hemeroteca Municipal

O pós-guerra destruiu contudo muito desse impulso e as mulheres foram incentivadas a regressar aos lares e à maternidade, para repor a população perdida, reforçando as anteriores conceções de identidades de género.